O que vou escrever hoje é resultado de uma série de observações e experiências esparsas que fui reunindo, especialmente nos últimos meses, algumas das quais passo a expor e discutir sem qualquer preocupação com a cronologia. Falarei, de início, sobre uma conversa (ou, antes, um início de conversa) de que participei há cerca de seis meses com três amigos numa esfirraria da nossa cidade. Basta dizer que naquela mesma semana eu havia discordado de algo que um deles, o Nelson, dissera em seu blog acerca da Europa medieval; porém, enquanto eu me preparava para iniciar a defesa da minha posição com os argumentos que me pareciam apropriados, descobri que eles não seriam necessários, pois meu amigo, reconhecendo que conhecia o assunto muito menos que eu (é bom deixar claro: não porque eu soubesse muito e ele pouco, mas porque eu sabia alguma coisa e ele nada), convenceu-se imediatamente de que eu devia ter razão, e convenceu-se a ponto de reescrever o trecho contestado antes que mais alguém o lesse. Entretanto, ao comentarmos esse acontecimento com os outros dois amigos, entre uma esfirra e outra, o Nelson foi censurado por um deles, que alegou, citando e endossando uma famosa declaração de Albert Einstein, que nenhum conhecimento deve ser baseado na autoridade de quem quer que seja. O assunto rapidamente se desviou a partir daí, e a noite não era mesmo propícia a um debate intelectual sério. Posteriormente, entretanto, eu não perdi a oportunidade de ironizar a réplica do meu segundo amigo, alegando que me abstive de contestá-la porque não julguei ser sensato questionar a autoridade de Einstein.
No fim das contas, eu acredito que a atitude do Nelson foi muito acertada, e a reprimenda do meu outro amigo, a despeito de contar com o apoio do pai da relatividade, inteiramente infundada, por razões que pretendo esclarecer adiante. De qualquer forma, não se pode negar, penso eu, que esse acontecimento ilustra e resume, ainda que de maneira algo simbólica, algumas interessantes questões sobre o papel intelectual da autoridade. Trata-se de uma questão espinhosa, sobre a qual não tenho a menor pretensão de discorrer de maneira completa. Desejo apenas deixar anotadas certas considerações úteis, talvez, como introdução ao assunto.
O primeiro ponto a ser notado é que, ao discutir a possibilidade do conhecimento baseado em autoridade, não estamos falando de algo hipotético, e sim de algo presente e inevitável na vida de cada um. Portanto, se colocarmos a questão como se se tratasse de um objeto perfeitamente dispensável, uma nova modalidade de conhecimento destinada a complementar ou substituir todas aquelas de que já dispomos, estaremos simplesmente falseando a perspectiva do problema. Se prestarmos atenção à maneira pela qual viemos a aprender as coisas que hoje sabemos, mesmo aquelas que nos parecem mais intuitivamente evidentes ou racionalmente inabaláveis, veremos que pelo menos uma parte delas baseia-se, no fim das contas, apenas na autoridade de alguém (ou mesmo de muita gente) que consideramos digno de confiança para falar do assunto. Posso citar como exemplos de fatos que aceito com base na autoridade de outras pessoas os seguintes casos: a ocorrência de um golpe militar contra o governo de João Goulart em 1964, a existência da China, a forma elíptica das órbitas dos planetas e a validade do Teorema de Pitágoras. Jamais vi demonstrações cabais de qualquer desses fatos, e, no entanto, recuso-me a levar a sério qualquer um que me considere crédulo demais por causa disso. A autoridade de alguém está por trás de boa parte do que sabemos ou julgamos saber, e isso inclui também o que sabem ou julgam saber até os mais ferrenhos inimigos da autoridade, ainda que eles próprios não o percebam. E a não percepção desse fato resulta fatalmente em idéias quase tão absurdas quanto a de justificar o repúdio à autoridade recorrendo à opinião de alguém que entenda muito desses assuntos (fique claro, porém, que não era essa a intenção do meu segundo amigo; se fosse, eu não teria feito ironia alguma, e sim rompido em prantos).
Houve um tempo em que todo mundo era capaz de perceber o papel imprescindível que a autoridade deve exercer, na educação em geral, e na educação intelectual em particular. As pessoas tomavam como óbvio que para transmitir algum conteúdo a uma pessoa, não apenas é necessário saber mais que ela sobre o assunto em questão, como também é impossível justificar devidamente cada afirmação feita, e isso por causa da ignorância mesma do aluno sobre o assunto. Parte das teorias e práticas pedagógicas modernas, tão afeitas a conceitos deturpados de "igualdade" e "democracia" (digo de passagem que as propostas efetivamente implementadas de educação universal não me parecem outra coisa senão a democratização da burrice), parecem se basear justamente na ignorância ou mesmo na indisposição contra esse fato, como se a mera pretensão de saber mais que outras pessoas, por mais justificada que seja, não passasse de arrogância.
Isso nos traz de volta ao problema. O enfoque deste texto não é sobre o papel da autoridade na educação enquanto tal; a historinha que contei no início era, antes, sobre o papel da autoridade no debate. Ainda assim, tive boas razões para dizer o que disse no parágrafo anterior. É comum, embora não tanto quanto deveria, uma pessoa esquivar-se de participar de uma discussão alegando que não conhece suficientemente bem o assunto em questão. Ultimamente, porém, tenho me sentido mais freqüentemente inclinado a fugir da discussão pelo motivo inverso; e de fato já me recusei algumas vezes a debater certos assuntos, limitando-me a observar que meus interlocutores não tinham as capacitações intelectuais mínimas para tanto. Desconfio que as pessoas em questão sabiam que eu estava dizendo a verdade. Ainda assim, as reações mais freqüentes nesses casos são basicamente duas: ou a pessoa em questão profere um julgamento moral sobre a minha pessoa, acusando-me de arrogância ou presunção, ou me acusa de tentar substituir a argumentação válida por um mero apelo à autoridade, acusação essa que vem fatalmente acompanhada da primeira, já que a autoridade alegada é a minha própria. Não pretendo aqui fazer referência a nenhuma situação específica, mas menciono esses fatos por serem reveladores de alguns aspectos relevantes do problema que estou discutindo.
Participei, há cerca de dois anos, de um dos eventos mais ridículos da minha vida: tentei convencer um adolescente, estudante colegial, de que é possível conhecer a composição química das estrelas, coisa que ele considerava impossível. Meu fracasso foi rápido e completo, é claro. Mas, embora minha didática possa ter sido muito ruim, meus argumentos certamente não o eram. Ocorre apenas que meu colega, desconhecendo inteiramente as disciplinas necessárias à compreensão da técnica que eu estava tentando lhe explicar - astronomia, química, óptica, espectroscopia - , não tinha sequer condições de julgar os méritos dos argumentos que eu expunha. Já passei por essa situação outras vezes, tanto antes quanto depois, mas foi naquela noite que percebi esse fato importantíssimo: o ignorante completo, especialmente se o for a ponto de não ter sequer consciência de sua ignorância, leva indiscutível vantagem em qualquer discussão. Debater com ele é muito mais árduo que debater com alguém de conhecimentos comparáveis, ou mesmo significativamente maiores, justamente por sua capacidade de compactar em poucas frases uma quantidade imensurável de falsidades, contradições, simplificações e falácias, cuja explicitação e crítica numa linguagem acessível à sua mente fatalmente se tornam demasiado longas ou mesmo impossíveis. Mesmo que não haja da parte do ignorante qualquer desonestidade intelectual e que ele esteja sinceramente interessado em conhecer a verdade sobre o assunto (possibilidades que, nessas condições, considero bem pouco prováveis, mas adoto ao menos como hipóteses), o simples fato de ele portar-se como debatedor e não como ouvinte ou aluno já será um obstáculo quase instransponível a quem queira apresentar-lhe essa verdade.
O filósofo Olavo de Carvalho resumiu muito bem o problema ao dizer que "não há debate entre o conhecimento e a ignorância". Não por acaso, ele disse isso no contexto de uma discussão travada com Rodrigo Constantino, um sujeito que, embora escreva coisas interessantes sobre política e economia, desconhecia totalmente o assunto em pauta, que era a religião (em particular a tradição judaico-cristã), não sendo nada além de mais um típico ateuzinho que ainda leva a sério as bobagens proferidas por um charlatão tagarela como Voltaire. As sarcásticas considerações do Olavo sobre a mediocridade intelectual de seu oponente podem ter causado má impressão em muitos leitores, mas, tendo estado na mesma situação, não posso deixar de dar-lhe razão, principalmente se, como é provável, ele já tiver passado por essa situação muitas vezes em seus sessenta anos de vida. Eu mal cheguei aos vinte e três e minha paciência com esse tipo de coisa já não é a mesma de algum tempo atrás...
Espero que fique claro que o conteúdo deste post não só não se dirige a ninguém em particular, mas também vale como lembrete para mim tanto quanto para qualquer outra pessoa. Pois eu também sou falível, tanto no sentido de ainda me meter ocasionalmente a discutir assuntos sobre os quais não sei nada quanto no sentido, muito mais desagradável, de me meter a discutir assuntos que conheço com pessoas que o ignoram por completo. E cabe observar ainda que, comparando o ato de dizer a uma pessoa que ela está discutindo sem conhecer com o ato de discutir sem conhecer, não posso ver arrogância autêntica senão no segundo. O primeiro passo para a resolução de qualquer problema é o reconhecimento da existência do mesmo, e o homem que quiser se ver livre da ignorância sobre um assunto qualquer não tem escolha senão começar submetendo-se à autoridade de outro que sabe mais a respeito do tema. Se não houver um aprendizado prévio, se não existir a posse comum, entre os debatedores, do conjunto de conhecimentos necessários à compreensão da questão discutida, não existe debate verdadeiro, mas apenas retórica (em algum sentido da palavra) ou uma aula disfarçada e provavelmente sem sucesso.
Por conseguinte, o ignorante não deve tentar debater em hipótese alguma, pois sua simples participação inviabiliza a própria existência do debate. Não pretendo voltar a participar desse tipo de evento, a menos que eu queira exercitar minhas habilidades retóricas ou ensinar algo ao meu interlocutor, pois essas são as únicas possibilidades concretas. Assim, quando eu lhe disser que não é possível debater o assunto com ele, não estarei anunciando uma decisão minha, e sim um fato constatado como inelutável. E também não estarei recorrendo ao argumento da autoridade; mesmo o uso falacioso desse argumento requer também, em primeiro lugar, a existência de um debate.
2 comentários:
Acho q existem inúmeros fatores a mais que caracterizam o comportamento de uma pessoa (ignorante ou não) em um debate sobre um assunto.
Por exemplo, vc me conhece e sabe q mtas vezes defendo e discuto coisas q sei mto pouco a respeito. Mas algumas vezes, gosto de fazer isso pq escuto argumentos contrários aos q eu ouvi anteriormente sobre o assunto, e se eles são mais fortes, fico com eles. É uma maneira preguiçosa de aprender mais sobre um assunto. Fiz isso em algumas discussões q tive sobre cotas racias na universidade. Não fiz, por exemplo, qdo defendia o filme Quem somos nós.
Outra coisa, não é preciso ter conhecimento pleno sobre um assunto para perceber que alguém está falando besteiras. Esse é um dos erros mais comuns q vejo nas pessoas, somente discutir com alguém q tem o mesmo(ou maior) nível intelectual que o dela, sendo q intelectualidade não é algo unidimensional. Inevitavelmente todos fazemos isso. Sem contar que é impossível saber todos os lados de um assunto, portanto se algo tem 10 maneiras diferentes para se olhar e uma pessoa souber 9, outro pode saber apenas a outra maneira, sendo ela a mais fundamental para o real entendimento do assunto.
Enfim, não sei mto sobre o assunto, então concordo com vc q deve saber mais, mas se quiser discutir qualquer dia desses, estamos aí.
Interessantíssimo este post.
Sou de São Carlos e tava indignado com a dificuldade de se discutir com alguém ignorante. Resolvi buscar no google assuntos relacionados e vim cair aqui. Li e achei tudo o que eu precisava saber. Eu era um ignorante sobre como ou porque debater ou não com um ignorante.
Coincidentemente caí no blog de um morador da minha cidade.
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