Embora o assunto de que vou tratar neste post não tenha necessariamente alguma relação com o espiritismo, não posso deixar de começar com uma menção a Allan Kardec, por uma simples questão de justiça. Mesmo deixando de lado quaisquer considerações sobre a doutrina espírita considerada em si mesma, eu não tenho muita simpatia intelectual pelo fundador desse movimento. Ainda assim, ele me ensinou algumas coisas interessantes quando, aos quinze anos, li pela primeira vez uma de suas obras, O livro dos espíritos. Já na introdução desse livro, Kardec faz a seguinte advertência, que considero muito acertada:
"Com relação às coisas notórias a opinião dos sábios é, com toda razão, fidedigna, porquanto eles sabem mais e melhor do que o vulgo. Mas no tocante a princípios novos, a coisas desconhecidas, essa opinião quase nunca é mais do que hipotética, por isso que eles não se acham, menos que os outros, sujeitos a preconceitos. Direi mesmo que o sábio tem mais prejuízos que qualquer outro, porque uma propensão natural o leva a subordinar tudo ao ponto de vista donde mais aprofundou os seus conhecimentos: o matemático não vê prova senão numa demonstração algébrica, o químico refere tudo à ação dos elementos, etc. Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis quase sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana. Assim, pois, consultarei, do melhor grado e com a maior confiança, um químico sobre uma questão de análise, um físico sobre a potência elétrica, um mecânico sobre uma força motriz. Hão de eles, porém, permitir-me, sem que isto afete a estima a que lhes dá direito o seu saber especial, que eu não tenha em melhor conta suas opiniões negativas acerca do Espiritismo do que o parecer de um arquiteto sobre uma questão de música."
Cabe observar que, quase um século e meio depois, os métodos de argumentação dos céticos não melhoraram em absolutamente nada. Pode-se discordar à vontade do que dizem os espíritos, e eu mesmo discordo de muitas coisas, mas jamais vi um argumento convincente contra a realidade dos próprios fenômenos espíritas. A melhor tentativa que já encontrei nesse sentido foi a de Carl Sagan em O mundo assombrado pelos demônios, mas o renomado astrônomo não chegou nem a tocar nos argumentos oferecidos por Kardec na introdução que mencionei, pra não falar dos argumentos de outro espiritualista, o poeta W. B. Yeats, ou mesmo dos apresentados no brilhante livro Ortodoxia pelo escritor G. K. Chesterton. Sagan e seus seguidores acabam, assim, justificando o juízo que Kardec faz deles na citação acima, pois seus argumentos consistem exclusivamente de generalizações injustas e impensadas, considerações filosóficas baseadas nas imbecilidades pragmatistas de Charles Peirce e seus discípulos (embora os próprios céticos possam não saber disso) e, como aponta Kardec, nesse reducionismo metodológico que fere claramente o bom senso. Contrastado com qualquer um dos modernos céticos, Allan Kardec emerge como um gênio de incomparável lucidez filosófica.
Esse modo de raciocínio dos nossos céticos estende-se, porém, para muito além da consideração dos fenômenos espíritas. Na verdade, minha intenção inicial ao planejar este post, há alguns dias, era comentar uma reportagem publicada na revista Época em 13 de novembro do ano passado, intitulada A igreja dos novos ateus. Fala sobre três livros publicados quase simultaneamente por três eminentes ateus (o biólogo Richard Dawkins, o filósofo Daniel Dennett e o neurocientista Sam Harris) destinados a combater a religião, que eles consideram a fonte de toda a ignorância, o obscurantismo e a perversidade que existem no mundo. De Sam Harris eu nunca havia ouvido falar. Mas Dawkins e Dennett eu conheço, e posso dizer que são piores até que o próprio Carl Sagan. E quando seus argumentos, que já não são grande coisa, são simplificados por um jornalista brasileiro e colocados naquele estilo extremamente irritante que é o padrão literário das revistas populares do nosso país, a coisa toda se torna indigna de comentário. Por isso, ao reler a reportagem durante esta semana, desisti de escrever a respeito dela o que eu pretendia dizer.
Há outros motivos, porém. Um deles é que a maior parte do espaço é gasta com narrativas perfeitamente irrelevantes, como a do administrador gaúcho que no Natal não comemora o nascimento de Cristo, e sim o de Isaac Newton, ou a da dentista paulista que se acha muito tolerante à religião porque responde "amém" quando uma velhinha de 80 anos lhe diz "Deus te abençoe". O artigo também contém ingenuidades gritantes, como quando diz que a publicação simultânea de todos esses livros é apenas uma feliz coincidência, não havendo qualquer movimento organizado por trás disso, e muito menos um projeto político, quando é óbvio que há. Também constam as bobagens de sempre contra o tal "fundamentalismo religioso", expressão que designa qualquer crítica ao naturalismo filosófico que domina o ambiente acadêmico. Mas o tom geral do artigo é, não digo favorável, mas condescendente no que diz respeito à religião. A melhor parte, porém, está na última página: um texto chamado O provincianismo neo-ateu, de um tal Marcelo Cavallari, de quem eu nunca havia ouvido falar. Em apenas dois terços de página esse sujeito disse praticamente tudo o que havia a ser dito, não restando quase nada que eu pudesse acrescentar. Disse, em resumo: que Dawkins e seus amigos ignoram completamente as questões filosóficas e epistemológicas envolvidas no debate sobre a religião, e mesmo sobre a própria ciência; que parecem um punhado de positivistas ingênuos saídos do século XIX, ignorando tudo o que se passou no mundo desde então; e que o fato de que a ciência não encontra meios de estudar Deus nada mais é que um indício das limitações do método científico.
Por ignorar esse último ponto, os "neo-ateus" são acusados por Cavallari de praticarem aquilo que ele denomina "provincianismo metodológico", que é, como já vimos, a mesma queixa feita por Allan Kardec contra a comunidade científica de seu tempo. Isso não apenas mostra que o materialismo de fato não melhorou nada de lá pra cá, o que justifica plenamente a comparação feita pelo colunista, mas também coloca diante de nós esse problema do método. Num contexto algo diverso, o filósofo Paul Feyerabend escreveu um excelente livro, Contra o método, no qual adverte que o problema da ciência é o fato de ela possuir um método. Considero isso um exagero, pra dizer o mínimo, ainda mais em vista da solução proposta por Feyerabend, que descamba para o puro irracionalismo. Ainda pretendo dedicar um post a esse livro, mas por ora basta dizer que ele não deixa de estar parcialmente certo num ponto: a pretensão de certos cientistas de terem nas mãos o único método válido para o conhecimento efetivo da realidade, desprezando todos os outros, resulta num prejuízo intelectual imensurável: o provincianismo transforma-se num imperialismo, com cada método tentando subjugar ou suplantar os demais.
O risco, porém, é mais sério que isso. Pior que achar que só um método de investigação é capaz de oferecer conhecimento seguro é confundir as limitações do método com a estrutura da própria realidade investigada. Nossos materialistas incorrem o tempo todo nesse erro, supondo que o fato de que o método científico só pode investigar a matéria deve-se ao fato de que a matéria é tudo o que existe para se investigar. Mas os praticantes das ciências naturais e experimentais não são de modo algum os únicos atingidos por esse mal. Boa parte das bobagens em voga hoje em dia possui sua origem num equívoco desse tipo. É o caso, por exemplo, do relativismo cultural, que nasceu de uma simples necessidade metodológica da antropologia: a fim de preservar a objetividade científica desse campo de estudos, era necessário que o antropólogo se restringisse a colher dados sobre a cultura do povo analisado, abstendo-se, nesse ato, de incluir juízos morais a respeito da mesma. Depois de um tempo, porém, os próprios antropólogos parecem ter se esquecido de que essa era apenas uma norma metodológica, e passaram a alardear que, como uma questão de fato, não se pode falar em superioridade moral de uma cultura sobre outra. Também é o caso da psicologia comportamental ou behaviorista, que, limitando-se a investigar a mente humana em seu aspecto puramente físico, como se esta fosse apenas um computador muito complexo, acabou por concluir que tudo o que pensamos haver nela de imaterial na verdade não existe.
Conclusões desse tipo são evidentemente enganosas. É como se um astrônomo desenvolvesse métodos para investigar os corpos celestes e depois, esquecendo-se de que seu objetivo inicial era somente esse, passasse a apontar seu telescópio para cima à procura de peixes e, não os encontrando, concluísse que tais seres não existem. O que falta às pessoas que raciocinam dessa forma é a simples percepção de que nenhum método de investigação racional, existente ou por inventar, pode ter a pretensão de abarcar o real em sua totalidade. Pois desenvolver um método consiste justamente em escolher algum dentre os inúmeros aspectos que a realidade nos oferece e separá-lo dos demais a fim de facilitar a compreensão por parte do investigador. Essa separação, porém, não é um dado da realidade, e sim uma idealização abstrata realizada de maneira intencional pela mente do pesquisador. Conseqüentemente, este deve ser cuidadoso ao extrapolar suas conclusões, pois estas não podem logicamente ser mais abrangentes que os métodos que as produziram, e estes, pela sua própria natureza, não podem ser senão descrições parciais da realidade.
Não posso deixar de dizer que fiquei algo preocupado ao descobrir, há poucos dias, que nem um gênio como Platão escapou completamente desse erro. Percebi isso lendo algumas transcrições de palestras sobre Aristóteles proferidas pelo filósofo Olavo de Carvalho, que é provavelmente o maior especialista em filosofia aristotélica do Brasil, e um dos maiores do mundo atual. Em suas aulas Olavo chama a atenção justamente para esse fato: Platão formulou sua doutrina das idéias apenas por ter levado tão a sério o método socrático de concentrar a atenção nas essências das coisas, desprezando seus acidentes (estou usando terminologia aristotélica, mas isso pouco importa), que acabou separando aquelas do mundo sensível, conferindo-lhes existência independente e tratando estes como pouco mais que meras aparências ilusórias. Quanto a esse aspecto, a grande contribuição de Aristóteles foi a conciliação da unidade do real com a diversidade dos meios de apreendê-lo. Eis um problema filosófico sério, que os intelectuais modernos, cujas inteligências somadas não parecem chegar perto da de Platão, não têm conseguido resolver, pois freqüentemente não são capazes sequer de perceber a existência do problema. Parece-me claro que Kardec estava certo ao afirmar que isso é apenas uma conseqüência da fraqueza humana.
Um comentário:
Ufa, acho q naum ler em inglês faz eu viver num mundo muito restrito!!
Consegui enterder a essência do texto, mas naum conheço praticamente nenhum autor q vc citou....
bjo
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