Neste texto discorrerei sobre um tema que está na minha mente há algum tempo. Ainda antes de ir à França, em outubro, eu havia concluído a leitura de um livro digno de nota, sobre um tema que julgo muito interessante. Trata-se do primeiro volume da série Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, cuja conclusão, a menos que eu esteja mal informado, não foi publicada até o momento. Fazia já um tempo que eu vinha pretendendo ler essa obra, tanto por sua reputação quanto pela de seu autor, o historiador americano John Paul Meier. Esse tomo inicial, intitulado As raízes do problema e da pessoa, me foi gentilmente emprestado pelo meu amigo Robson, e sua leitura me foi muito proveitosa. Farei aqui, de maneira um tanto informal e despretensiosa (inclusive por ter devolvido o exemplar há mais de três meses), alguns breves comentários a respeito desse livro e de certas percepções que resultaram de meu contato com ele.
Como profissional acadêmico, Meier nada deixa a desejar: é um escritor habilidoso e ocasionalmente engraçado, comunica suas idéias e argumentos com clareza e é homem de grande erudição. Por mais críticas que se lhe façam, como eu mesmo farei daqui a pouco, não é alguém cuja inteligência e conhecimentos devam ser tratados com desprezo. Eu apreciaria ter esse livro em casa para consulta, e suas análises enriqueceram meu conhecimento com muitos detalhes pertinentes. Ele trata com o merecido desdém obras popularescas que tentam negar a existência de Cristo - como os livros de George A. Wells ou o documentário Zeitgeist - ao não dedicar a esse tipo de bobagem mais do que uma contundente nota de rodapé. Há uma série de assuntos interessantes discutidos na obra, entre os quais as menções a Jesus na literatura rabínica, a doutrina da virgindade (perpétua ou não) de Maria, os diversos aspectos do contexto social e cultural da Palestina do século I e muitos pormenores filológicos envolvidos na compreensão das passagens dos evangelhos. Meier tem ainda o mérito de evitar especulações fúteis que vão muito além do que seus dados e critérios permitem concluir. E faz muito bem em combater certos excessos que têm sido cometidos por historiadores de orientação liberal em seu desprezo à historicidade dos evangelhos bíblicos. Creio que a leitura desse livro poderia ter um efeito muito benéfico para pessoas não cristãs mal informadas, embora inteligentes, que se habituaram a Frank Zindler e outras figuras sempre presentes nos sites de apologética ateísta, ou mesmo às ridículas reportagens sobre o assunto que costumam ser veiculadas pela grande mídia.
Os pontos altos do livro, para mim, foram dois: a defesa da autenticidade das duas referências feitas a Jesus no Antiguidades judaicas, de Flávio Josefo - o núcleo do Testimonium Flavianum e a menção à morte de Tiago, o irmão do Senhor - e a crítica à tendência hoje seguida por alguns acadêmicos (e todos os jornalistas), em especial John Dominic Crossan e seus comparsas do Jesus Seminar, de dar ao Evangelho de Tomé importância comparável àquela concedida aos canônicos. (De modo geral, aliás, Meier é muito consistente e persuasivo ao defender que a procura por informações históricas adicionais sobre Jesus, isto é, fora dos evangelhos, é pura perda de tempo.) Desses dois assuntos, que eu julgava conhecer o suficiente, o autor faz análises não apenas exaustivas, mas brilhantes, inigualadas por quaisquer outras de que eu já tenha ouvido falar. (Embora eu reconheça sem dificuldade alguma que esse comentário, vindo de alguém como eu, não chega a ser objetivamente um grande elogio.)
Vejo também, entretanto, muito espaço para críticas, tanto a pontos específicos quanto à estrutura global e às próprias motivações da obra. O autor não deixa de cair na cilada do ceticismo excessivo em certos pontos, como ao negar a realidade histórica das narrativas sobre a infância de Cristo ou ao defender que o relato da concepção virginal de Jesus Cristo é fruto de uma tradição posterior, que não poderia de modo algum ter origem na própria mãe do Salvador. Aliás, o trecho do livro que defende esse postulado é um dos bem poucos nos quais a argumentação do autor parece-me inteiramente ridícula, mesmo segundo seus próprios pressupostos. (Admito, entretanto, que isso não significa que eu tenha uma resposta imbatível para cada detalhe no qual a posição de Meier conflita com a minha, de maneira geral. Significa apenas que vi pontos questionáveis, e alguns de defesa impossível, em número suficiente para concluir que seu ceticismo tende, às vezes, a ir além do que considero ser o limiar da sensatez.) Meier de fato não crê na virgindade de Maria e não a considera importante. Quanto a isso, e a várias outras coisas, seu espírito é mais ou menos o mesmo de Rudolf Bultmann, que julgava ser irrelevante para a fé cristã a própria realidade histórica da ressurreição de Cristo (contrariando frontalmente o ensino de Paulo em 1 Coríntios 15.14). A fim de que a comparação não pareça exagerada, devo dizer que, embora o autor de fato não seja tão liberal quanto poderia ser no que diz respeito às suas conclusões específicas sobre a historicidade das narrativas dos evangelhos, nem por isso é menos liberal em sua mentalidade. Uma evidência disso, em conexão com a questão que acabo de mencionar, pode ser encontrada na sua decisão de não se pronunciar sobre a realidade da ressurreição corpórea de Cristo, por achar que esse tema se encontra fora do alcance da investigação histórica. Dessa forma, ele recusa-se a priori a examinar os méritos relativos das diversas teorias sobre a origem das narrativas da ressurreição, perdendo a excelente oportunidade de descobrir se alguma delas tem mais fundamento histórico que as demais.
Aliás, embora atribuindo-lhe um sentido algo diverso, Meier endossa explicitamente a afirmação de Bultmann de que o Jesus histórico não é o Cristo da fé. Apesar disso, ele compõe sua obra com o propósito declarado de contribuir para uma elaboração moderna e mais apropriada da cristologia. Não parece lhe passar jamais pela cabeça que essas duas pretensões se excluem mutuamente. Em sua tentativa de sustentar ambas as idéias ao mesmo tempo, Meier apenas revela aquele desprezo muito comum pela compreensão tradicional e bíblica da fé cristã. Isso fica muito nítido numa nota em que ele desqualifica a posição de um outro estudioso - Edwin Yamauchi, se não me engano - alegando apenas que tal posição tende a favorecer um programa teológico conservador. Ora, Meier quer nos convencer - e enfatiza isso diversas vezes ao longo do livro - de que, se desconsidera certas condições impostas pela teologia, é apenas pela necessidade de manter, tanto quanto possível, a imparcialidade que se espera num historiador que cumpre diligentemente seu trabalho. Não pretendo afirmar que, ao proceder dessa forma, o autor esteja sendo hipócrita ou enganando os leitores. Mas algumas de suas declarações devem nos alertar acerca da possibilidade de ele não ser tão imparcial quanto supõe. Pois se a teologia não deve ser levada em conta, estudioso algum deve ter suas posições desqualificadas com base numa consideração sobre o tipo de teologia que favorecem.
Nesse sentido, ao pretender uma imparcialidade histórica calcada num desprezo quase explícito pela teologia tradicional e na busca de uma cristologia apropriada aos tempos modernos (eufemismo que significa "uma cristologia que se acomode aos dogmas filosóficos da modernidade"), Meier torna-se um exemplo ilustrativo daquele fenômeno ao qual se referiu Francis Schaeffer quando afirmou que "a alta crítica não sobreveio porque certos fatos a fizeram necessária, mas porque a filosofia humanista sobreveio primeiro". Além disso, ele serve também como exemplo da moderna tendência liberal do catolicismo. (Sim, pois Meier é católico romano, e a mera existência de pessoas como ele - e são muitas - já deveria servir de alerta contra o julgamento ingênuo de que o poder centralizador da Igreja Católica constitui salvaguarda eficaz contra a diversidade que o protestantismo, com sua inerente fragmentação institucional, não é capaz de conter.) O próprio Meier faz questão de lembrar-nos dessa tendência o tempo todo, citando todos os documentos oficiais da Igreja que possam respaldar seus posicionamentos. E nisso também sua predisposição é bastante evidente: ele dificilmente sente necessidade de justificar-se quando nega a historicidade de algo que é relatado nos Evangelhos ou aponta contradições nos textos bíblicos. Quando aceita algo que está escrito, contudo, ele gosta de mostrar que está sendo imparcial, que poderia, se preferisse, rejeitar esse algo sem qualquer problema. Não há dúvida de que o propósito de Meier com tais atitudes é conquistar a simpatia dos leitores afeitos à "intelectualidade" secular (estejam eles dentro ou fora das igrejas cristãs) e posar de racional, de iluminado, de moderninho. Mas há, naturalmente, um preço a ser pago: para quem, como eu, encontra-se em franca oposição a isso tudo, sua parcialidade é muito evidente, ainda que não o seja para ele próprio.
A fim de não nos restringirmos a esse papo, que alguns talvez considerem demasiado abstrato, convém que façamos a seguinte indagação: de que maneira isso tudo interfere na meta principal do livro, que é a de chegar a um retrato consistente do Jesus histórico? Sem tentar uma análise exaustiva dessa questão, ofereço um exemplo que, num sentido muito objetivo, considero bastante comprometedor e, subjetivamente, foi para mim a maior decepção proporcionada pelo livro. O problema não está em nada do que o autor disse, e sim no que deixou de dizer. Uma de minhas principais motivações para ler o livro foi a ânsia de entender melhor os debates sobre a data e a autoria dos evangelhos, bem como sobre o processo de formação dos textos (falei algo sobre esse ponto aqui). Ou seja, a questão é: quando, por quem e a partir de quê foi composto cada um dos evangelhos? Sobre as fontes e datas, Meier limita-se a declarar sua opinião e indicar publicações que a corroboram (o que é até compreensível, pois ele defende uma posição razoavelmente bem aceita, embora de modo algum unânime). No entanto, não há uma só palavra sobre a autoria. O que não significa, é claro, que Meier não tenha uma posição a respeito. Significa apenas que ele toma sua opinião como verdade e a utiliza ao longo de toda a obra sem qualquer fundamentação, discussão ou confronto com hipóteses diferentes. Na verdade, o leitor de Meier jamais saberá da existência delas se o tiver como única fonte de informação. E sua opinião diz que os evangelhos são baseados em fontes escritas e tradições orais fragmentárias, tardiamente compiladas e adaptadas por pessoas que nenhum contato tiveram com os eventos ou suas testemunhas. Essa é a hipótese de trabalho a partir da qual o autor julga a historicidade dos evangelhos, passagem por passagem, eliminando o material espúrio e purificando o restante de contaminações redacionais.
É fácil notar que tal procedimento não se justifica de modo algum se a hipótese for falsa. Se, por exemplo, o apóstolo João tiver sido de fato o autor (ou o redator-chefe) do evangelho que leva seu nome, como a tradição dos primeiros séculos unanimemente afirma, qual é o sentido em discutir seu texto como se fosse apenas uma colagem de fragmentos? Ou em que bases podemos negar a validade dessa tradição, se ela conta inclusive com o testemunho de Irineu de Lyon, cujo mestre, Policarpo, foi discípulo direto do próprio João? Se o Evangelho segundo Mateus foi composto pelo publicano que seguiu Jesus e tornou-se um dos Doze, como se sustentará a tese de que ele não poderia ter ouvido o relato da concepção virginal de Cristo da própria Maria? Levando em conta todos os aspectos dessa discussão, eu me sinto mais inclinado a respeitar e admirar um sujeito como Josh McDowell, que não é historiador, teólogo ou erudito de espécie alguma, e sim apenas um apologeta cristão que estudou o assunto por considerá-lo pessoalmente relevante. Suas análises da evidência histórica são menos profundas, e ele incorre às vezes em simplificações e falácias por falta de rigor metodológico ou por um fervor apologético algo excessivo. Mas McDowell também não é nenhum ignorante do assunto, e a estrutura global de sua argumentação é muito mais coerente que a do renomado historiador.
Qual seria a melhor maneira de interpretar o silêncio de Meier sobre questões tão fundamentais? Será que ele considera esses argumentos (e muitos outros, dos quais citei apenas uns exemplos) ridículos a ponto de não merecerem sequer menção? Talvez. Será que ele julgou desnecessário argumentar a respeito porque apenas os conservadores pensam de maneira diferente? É possível. Permanece, porém, o fato de que seus oponentes apresentaram argumentos, e ele não apresentou nenhum em resposta. Sendo assim, que direito teria o autor de reclamar se um leitor concluísse que ele ignorou pontos absolutamente fundamentais? Afinal, qualquer comentário bíblico começa pela contextualização histórica, pela discussão da data e local da composição, seu autor e as fontes utilizadas. Como exigir menos que isso de um livro que pretende ser uma investigação histórica rigorosa, e não um "mero" comentário exegético? Por todas essas razões, o que me parece é justamente isso: Meier ignorou questões elementares, e tal negligência compromete a validade de todo o seu método e, por conseguinte, de muitas de suas conclusões sobre a historicidade dos textos. É como uma casa construída sobre a areia, como diria seu objeto de investigação.
Como profissional acadêmico, Meier nada deixa a desejar: é um escritor habilidoso e ocasionalmente engraçado, comunica suas idéias e argumentos com clareza e é homem de grande erudição. Por mais críticas que se lhe façam, como eu mesmo farei daqui a pouco, não é alguém cuja inteligência e conhecimentos devam ser tratados com desprezo. Eu apreciaria ter esse livro em casa para consulta, e suas análises enriqueceram meu conhecimento com muitos detalhes pertinentes. Ele trata com o merecido desdém obras popularescas que tentam negar a existência de Cristo - como os livros de George A. Wells ou o documentário Zeitgeist - ao não dedicar a esse tipo de bobagem mais do que uma contundente nota de rodapé. Há uma série de assuntos interessantes discutidos na obra, entre os quais as menções a Jesus na literatura rabínica, a doutrina da virgindade (perpétua ou não) de Maria, os diversos aspectos do contexto social e cultural da Palestina do século I e muitos pormenores filológicos envolvidos na compreensão das passagens dos evangelhos. Meier tem ainda o mérito de evitar especulações fúteis que vão muito além do que seus dados e critérios permitem concluir. E faz muito bem em combater certos excessos que têm sido cometidos por historiadores de orientação liberal em seu desprezo à historicidade dos evangelhos bíblicos. Creio que a leitura desse livro poderia ter um efeito muito benéfico para pessoas não cristãs mal informadas, embora inteligentes, que se habituaram a Frank Zindler e outras figuras sempre presentes nos sites de apologética ateísta, ou mesmo às ridículas reportagens sobre o assunto que costumam ser veiculadas pela grande mídia.
Os pontos altos do livro, para mim, foram dois: a defesa da autenticidade das duas referências feitas a Jesus no Antiguidades judaicas, de Flávio Josefo - o núcleo do Testimonium Flavianum e a menção à morte de Tiago, o irmão do Senhor - e a crítica à tendência hoje seguida por alguns acadêmicos (e todos os jornalistas), em especial John Dominic Crossan e seus comparsas do Jesus Seminar, de dar ao Evangelho de Tomé importância comparável àquela concedida aos canônicos. (De modo geral, aliás, Meier é muito consistente e persuasivo ao defender que a procura por informações históricas adicionais sobre Jesus, isto é, fora dos evangelhos, é pura perda de tempo.) Desses dois assuntos, que eu julgava conhecer o suficiente, o autor faz análises não apenas exaustivas, mas brilhantes, inigualadas por quaisquer outras de que eu já tenha ouvido falar. (Embora eu reconheça sem dificuldade alguma que esse comentário, vindo de alguém como eu, não chega a ser objetivamente um grande elogio.)
Vejo também, entretanto, muito espaço para críticas, tanto a pontos específicos quanto à estrutura global e às próprias motivações da obra. O autor não deixa de cair na cilada do ceticismo excessivo em certos pontos, como ao negar a realidade histórica das narrativas sobre a infância de Cristo ou ao defender que o relato da concepção virginal de Jesus Cristo é fruto de uma tradição posterior, que não poderia de modo algum ter origem na própria mãe do Salvador. Aliás, o trecho do livro que defende esse postulado é um dos bem poucos nos quais a argumentação do autor parece-me inteiramente ridícula, mesmo segundo seus próprios pressupostos. (Admito, entretanto, que isso não significa que eu tenha uma resposta imbatível para cada detalhe no qual a posição de Meier conflita com a minha, de maneira geral. Significa apenas que vi pontos questionáveis, e alguns de defesa impossível, em número suficiente para concluir que seu ceticismo tende, às vezes, a ir além do que considero ser o limiar da sensatez.) Meier de fato não crê na virgindade de Maria e não a considera importante. Quanto a isso, e a várias outras coisas, seu espírito é mais ou menos o mesmo de Rudolf Bultmann, que julgava ser irrelevante para a fé cristã a própria realidade histórica da ressurreição de Cristo (contrariando frontalmente o ensino de Paulo em 1 Coríntios 15.14). A fim de que a comparação não pareça exagerada, devo dizer que, embora o autor de fato não seja tão liberal quanto poderia ser no que diz respeito às suas conclusões específicas sobre a historicidade das narrativas dos evangelhos, nem por isso é menos liberal em sua mentalidade. Uma evidência disso, em conexão com a questão que acabo de mencionar, pode ser encontrada na sua decisão de não se pronunciar sobre a realidade da ressurreição corpórea de Cristo, por achar que esse tema se encontra fora do alcance da investigação histórica. Dessa forma, ele recusa-se a priori a examinar os méritos relativos das diversas teorias sobre a origem das narrativas da ressurreição, perdendo a excelente oportunidade de descobrir se alguma delas tem mais fundamento histórico que as demais.
Aliás, embora atribuindo-lhe um sentido algo diverso, Meier endossa explicitamente a afirmação de Bultmann de que o Jesus histórico não é o Cristo da fé. Apesar disso, ele compõe sua obra com o propósito declarado de contribuir para uma elaboração moderna e mais apropriada da cristologia. Não parece lhe passar jamais pela cabeça que essas duas pretensões se excluem mutuamente. Em sua tentativa de sustentar ambas as idéias ao mesmo tempo, Meier apenas revela aquele desprezo muito comum pela compreensão tradicional e bíblica da fé cristã. Isso fica muito nítido numa nota em que ele desqualifica a posição de um outro estudioso - Edwin Yamauchi, se não me engano - alegando apenas que tal posição tende a favorecer um programa teológico conservador. Ora, Meier quer nos convencer - e enfatiza isso diversas vezes ao longo do livro - de que, se desconsidera certas condições impostas pela teologia, é apenas pela necessidade de manter, tanto quanto possível, a imparcialidade que se espera num historiador que cumpre diligentemente seu trabalho. Não pretendo afirmar que, ao proceder dessa forma, o autor esteja sendo hipócrita ou enganando os leitores. Mas algumas de suas declarações devem nos alertar acerca da possibilidade de ele não ser tão imparcial quanto supõe. Pois se a teologia não deve ser levada em conta, estudioso algum deve ter suas posições desqualificadas com base numa consideração sobre o tipo de teologia que favorecem.
Nesse sentido, ao pretender uma imparcialidade histórica calcada num desprezo quase explícito pela teologia tradicional e na busca de uma cristologia apropriada aos tempos modernos (eufemismo que significa "uma cristologia que se acomode aos dogmas filosóficos da modernidade"), Meier torna-se um exemplo ilustrativo daquele fenômeno ao qual se referiu Francis Schaeffer quando afirmou que "a alta crítica não sobreveio porque certos fatos a fizeram necessária, mas porque a filosofia humanista sobreveio primeiro". Além disso, ele serve também como exemplo da moderna tendência liberal do catolicismo. (Sim, pois Meier é católico romano, e a mera existência de pessoas como ele - e são muitas - já deveria servir de alerta contra o julgamento ingênuo de que o poder centralizador da Igreja Católica constitui salvaguarda eficaz contra a diversidade que o protestantismo, com sua inerente fragmentação institucional, não é capaz de conter.) O próprio Meier faz questão de lembrar-nos dessa tendência o tempo todo, citando todos os documentos oficiais da Igreja que possam respaldar seus posicionamentos. E nisso também sua predisposição é bastante evidente: ele dificilmente sente necessidade de justificar-se quando nega a historicidade de algo que é relatado nos Evangelhos ou aponta contradições nos textos bíblicos. Quando aceita algo que está escrito, contudo, ele gosta de mostrar que está sendo imparcial, que poderia, se preferisse, rejeitar esse algo sem qualquer problema. Não há dúvida de que o propósito de Meier com tais atitudes é conquistar a simpatia dos leitores afeitos à "intelectualidade" secular (estejam eles dentro ou fora das igrejas cristãs) e posar de racional, de iluminado, de moderninho. Mas há, naturalmente, um preço a ser pago: para quem, como eu, encontra-se em franca oposição a isso tudo, sua parcialidade é muito evidente, ainda que não o seja para ele próprio.
A fim de não nos restringirmos a esse papo, que alguns talvez considerem demasiado abstrato, convém que façamos a seguinte indagação: de que maneira isso tudo interfere na meta principal do livro, que é a de chegar a um retrato consistente do Jesus histórico? Sem tentar uma análise exaustiva dessa questão, ofereço um exemplo que, num sentido muito objetivo, considero bastante comprometedor e, subjetivamente, foi para mim a maior decepção proporcionada pelo livro. O problema não está em nada do que o autor disse, e sim no que deixou de dizer. Uma de minhas principais motivações para ler o livro foi a ânsia de entender melhor os debates sobre a data e a autoria dos evangelhos, bem como sobre o processo de formação dos textos (falei algo sobre esse ponto aqui). Ou seja, a questão é: quando, por quem e a partir de quê foi composto cada um dos evangelhos? Sobre as fontes e datas, Meier limita-se a declarar sua opinião e indicar publicações que a corroboram (o que é até compreensível, pois ele defende uma posição razoavelmente bem aceita, embora de modo algum unânime). No entanto, não há uma só palavra sobre a autoria. O que não significa, é claro, que Meier não tenha uma posição a respeito. Significa apenas que ele toma sua opinião como verdade e a utiliza ao longo de toda a obra sem qualquer fundamentação, discussão ou confronto com hipóteses diferentes. Na verdade, o leitor de Meier jamais saberá da existência delas se o tiver como única fonte de informação. E sua opinião diz que os evangelhos são baseados em fontes escritas e tradições orais fragmentárias, tardiamente compiladas e adaptadas por pessoas que nenhum contato tiveram com os eventos ou suas testemunhas. Essa é a hipótese de trabalho a partir da qual o autor julga a historicidade dos evangelhos, passagem por passagem, eliminando o material espúrio e purificando o restante de contaminações redacionais.
É fácil notar que tal procedimento não se justifica de modo algum se a hipótese for falsa. Se, por exemplo, o apóstolo João tiver sido de fato o autor (ou o redator-chefe) do evangelho que leva seu nome, como a tradição dos primeiros séculos unanimemente afirma, qual é o sentido em discutir seu texto como se fosse apenas uma colagem de fragmentos? Ou em que bases podemos negar a validade dessa tradição, se ela conta inclusive com o testemunho de Irineu de Lyon, cujo mestre, Policarpo, foi discípulo direto do próprio João? Se o Evangelho segundo Mateus foi composto pelo publicano que seguiu Jesus e tornou-se um dos Doze, como se sustentará a tese de que ele não poderia ter ouvido o relato da concepção virginal de Cristo da própria Maria? Levando em conta todos os aspectos dessa discussão, eu me sinto mais inclinado a respeitar e admirar um sujeito como Josh McDowell, que não é historiador, teólogo ou erudito de espécie alguma, e sim apenas um apologeta cristão que estudou o assunto por considerá-lo pessoalmente relevante. Suas análises da evidência histórica são menos profundas, e ele incorre às vezes em simplificações e falácias por falta de rigor metodológico ou por um fervor apologético algo excessivo. Mas McDowell também não é nenhum ignorante do assunto, e a estrutura global de sua argumentação é muito mais coerente que a do renomado historiador.
Qual seria a melhor maneira de interpretar o silêncio de Meier sobre questões tão fundamentais? Será que ele considera esses argumentos (e muitos outros, dos quais citei apenas uns exemplos) ridículos a ponto de não merecerem sequer menção? Talvez. Será que ele julgou desnecessário argumentar a respeito porque apenas os conservadores pensam de maneira diferente? É possível. Permanece, porém, o fato de que seus oponentes apresentaram argumentos, e ele não apresentou nenhum em resposta. Sendo assim, que direito teria o autor de reclamar se um leitor concluísse que ele ignorou pontos absolutamente fundamentais? Afinal, qualquer comentário bíblico começa pela contextualização histórica, pela discussão da data e local da composição, seu autor e as fontes utilizadas. Como exigir menos que isso de um livro que pretende ser uma investigação histórica rigorosa, e não um "mero" comentário exegético? Por todas essas razões, o que me parece é justamente isso: Meier ignorou questões elementares, e tal negligência compromete a validade de todo o seu método e, por conseguinte, de muitas de suas conclusões sobre a historicidade dos textos. É como uma casa construída sobre a areia, como diria seu objeto de investigação.
2 comentários:
Olá Rapaz!
Tudo bem contigo?
Vou fazer uns comentários sobre sua análise do primeiro volume de "Um judeu marginal".
André Leonardo: "Vejo também, entretanto, muito espaço para críticas, tanto a pontos específicos quanto à estrutura global e às próprias motivações da obra. O autor não deixa de cair na cilada do ceticismo excessivo em certos pontos, como ao negar a realidade histórica das narrativas sobre a infância de Cristo ou ao defender que o relato da concepção virginal de Jesus Cristo é fruto de uma tradição posterior, que não poderia de modo algum ter origem na própria mãe do Salvador."
Rapaz, não é que ele caia em uma armadilha. Ele é, na maior parte do tempo, consistente com o melhor método histórico. Mas é esse método que sempre vai implicar uma distância, maior ou menor, entre uma biografia secular de Jesus e o que dizem os Evangelhos. A tentativa mesma de se procurar um "Jesus Histórico" à parte do Cristo da Tradição implica em se criar outra história distinta da tradicional. Nesse sentido, Meier está correto: O Jesus Histórico jamais será o Jesus Real, pois o Jesus Histórico é construído por meio de uma disciplina racionalista, com métodos analítico-críticos, pressupostos metodológicos naturalistas etc. E neste sentido Bultmann está correto. Está correto porque "se você parte dos princípios errados, sua conclusão também será errada", como disse Chesterton (cito de cabeça).
André Leonardo: "Sim, pois Meier é católico romano, e a mera existência de pessoas como ele - e são muitas - já deveria servir de alerta contra o julgamento ingênuo de que o poder centralizador da Igreja Católica constitui salvaguarda eficaz contra a diversidade que o protestantismo, com sua inerente fragmentação institucional, não é capaz de conter."
Sim, não é o poder centralizador que garante, de fato, salvaguarda para diversidade doutrinária, ou pior ainda, para doutrinas liberais e humanistas quanto ao Cristianismo. O que contribui para estas degenerescência é justamente o princípio do qual se parte pra fazer teologia ou analisar os textos sacros.
André Leonardo: "de que maneira isso tudo interfere na meta principal do livro, que é a de chegar a um retrato consistente do Jesus histórico?"
Em nada! O retrato consistente será alcançado, e de acordo com o critério do consenso indicado logo no início do primeiro volume: produção de um retrato de Jesus palatável ao mesmo tempo para católicos, protestantes, agnósticos...claro que um consenso desse só pode ser obtido por concessões cada vez maiores à modernidade e ao ceticismo em prejuízo da tradição.
André Leonardo: "É fácil notar que tal procedimento não se justifica de modo algum se a hipótese for falsa. Se, por exemplo, o apóstolo João tiver sido de fato o autor (ou o redator-chefe) do evangelho que leva seu nome, como a tradição dos primeiros séculos unanimemente afirma, qual é o sentido em discutir seu texto como se fosse apenas uma colagem de fragmentos?"
Sim, mas esse é TODO o dilema. Porque se a Tradição estiver correta, Jesus Histórico algum é necessário. Mas se a Tradição pode estar errada, então o método e as posições (e omissões) de Meier são todas válidas, pois este o método da disciplina histórica. E se, numa terceira opção, usarmos esse método apenas pra defender que a Tradição está correta, então é apologética.
Abraços!
André
A gnose moderna
No universo cristão a gnose emerge com a mesma idéia central, a de que o homem pode ser aperfeiçoado nesta vida e buscar a salvação ainda nesse mundo. Pelágio é o ancestral mais vistoso dessa heresia, derrotada, no campo teórico, teológico e político pelo grande Santo Agostinho. Mas a gnose acompanhou, como sombra, o Cristianismo pelos séculos seguintes até triunfar na modernidade (entendida esta como a cultura que moldou a civilização ocidental a partir do século XIV). Embora não seja um corpo de doutrina único e se manifeste em diferentes teorias e movimentos religiosos e políticos, o gnosticismo moderno tem como denominador comum declarar a imanência da salvação e reduzir a psique do homem à relação binária busca do prazer/fuga da dor. Essa caricatura espiritual gerou a criatura bifronte dada pelos falsos opostos liberalismo ateu e o marxismo revolucionário.
Os grandes restauradores do epicurismo na modernidade foram Locke e Rousseau, autores que geraram as tradições paralelas do liberalismo ateu e do marxismo revolucionário. Veja, meu caro leitor, que dessa árvore frondosa nasceu a falsa verdade filosófica estabelecida por pelo menos três séculos seguidos. Essa gente tomou conta dos Estados nacionais na Europa e nas Américas e, depois, no resto do mundo. Então quando eu falo em modernidade eu falo da linha de pensamento que seguiu seu curso a partir desses nomes que são familiares a toda a gente. Basta recordar que gigantes como Kant, Hegel, Marx e Nietzsche, sem falar nos autores do ramo britânico do liberalismo, como Smith e Ricardo, são os caudatários diretos dessa nova suposta verdade da alma.
A oposição entre a gnose moderna e o Cristianismo
O inimigo dessa gente é um só, a Igreja Católica e o Cristianismo ele mesmo. Na verdade as denominações protestantes são elas próprias uma plena manifestação do gnosticismo usando a roupagem evangélica. Sei que muitos dos seguidores dessas religiões ditas cristãs talvez nem tenham a noção do que se passou, porque não é tarefa fácil encontrar livros de história e menos ainda livros de filosofia política que relatem fielmente o que aconteceu. A decretação de morte de Deus por Nietzsche é o coroamento da modernidade e a síntese de tudo, o corolário da Reforma.
Nivaldo Cordeiro
http://www.sacralidade.com.br/mundo2008/0191.comunismo
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