2 de abril de 2011

A verdadeira inteligência - parte 1

Li no ano passado, em uma tradução inglesa, um livro deveras importante na história do pensamento filosófico cristão: A consolação da filosofia, de Boécio (470-526). Dividida em cinco partes (livros I a V), essa obra contém excelentes reflexões filosóficas, teológicas e morais expressas com grande beleza. Mas dei início à leitura do livro sem sequer desconfiar que em sua última parte é discutida a complicada questão da relação entre a soberania divina e a liberdade humana, assunto a que tenho dedicado alguma atenção nos últimos tempos, de várias maneiras. Achei que valia a pena traduzir e publicar o que me parece ser o trecho mais importante do Livro V, a fim de tornar mais acessível a compreensão de Boécio sobre o assunto. Efetuei, portanto, essa tradução e a publico em duas partes. Dito isso, restam apenas duas coisas a dizer. A primeira é lembrar que se trata de uma tradução da tradução, e que o segundo tradutor ignora tudo da língua original, e boa parte da língua intermediária. A quem encontrar erros, pois, peço que me perdoe e que os indique. E a segunda coisa que tenho a dizer é que não publico as opiniões de Boécio por concordar com elas, e sim por ver importância histórica, filosófica e teológica em sua abordagem, e não menos em seus erros que em seus acertos.

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Declaremos que a presciência existe, mas não traz necessidade aos eventos; então, penso eu, a mesma livre vontade será deixada intacta e absoluta. 'Mas', dirás, 'embora a presciência não constitua necessidade para um evento no futuro, é ainda assim um sinal de que ele necessariamente acontecerá.' Portanto, ainda que não houvesse presciência, seria claro que os eventos futuros eram necessários; pois todo sinal pode apenas mostrar aquilo para o qual ele aponta; ele não o traz à existência. Daí se segue que devemos primeiro provar que nada ocorre senão por necessidade, para que fique claro que a presciência é um sinal dessa necessidade. De outro modo, se não há necessidade, a presciência não será um sinal daquilo que não existe. Mas é necessário que a prova repouse sobre um raciocínio firme, não sobre sinais ou argumentos externos; ela deve ser deduzida a partir de causas adequadas e persuasivas. Como é possível que coisas que foram previstas não aconteçam? Seria como se acreditássemos que não ocorrerão eventos que a Providência sabe de antemão que ocorrerão, e como se não pensássemos que, embora ocorram, não tinham em suas próprias naturezas necessidade alguma que os levasse a ocorrer. Podemos ver muitas ações se desenvolvendo diante de nossos olhos; assim como os condutores de carruagens veem o desenvolvimento de suas ações enquanto controlam e guiam suas carruagens, e muitas outras coisas igualmente. Alguma necessidade impele alguma dessas coisas à ocorrência? É claro que não. Toda arte, planejamento e intenção seria em vão se tudo acontecesse por compulsão.

Portanto, se as coisas não têm necessidade de acontecer quando acontecem, elas não têm necessidade de estar para acontecer antes que aconteçam. Daí se segue que são coisas cuja ocorrência é inteiramente livre de necessidade. Pois não penso que haja algum homem que dirá isso, que as coisas que são feitas no presente estavam para acontecer no passado, antes que acontecessem. Assim, esses eventos previstos têm seus resultados livres. Assim como a presciência das coisas presentes não traz necessidade sobre elas enquanto acontecem, também a presciência do futuro não traz nacessidade às coisas que estão para vir.

Mas dirás que não há dúvida também quanto a isto: se pode haver alguma presciência de coisas que não têm seus resultados determinados por necessidade. Pois eles parecem não ter harmonia; e pensas que, se são previstos, segue-se que há necessidade; se não há necessidade, não podem ser previstos; nada pode ser percebido seguramente pelo conhecimento, a menos que seja certo. Mas se as coisas contêm incerteza quanto ao resultado, podendo, no entanto, ser previstas como certas, essa previsão é claramente a mera obscuridade da opinião, e não o conhecimento verdadeiro. Pois crês que pensar de algum outro modo é oposto ao verdadeiro conhecimento. A causa desse erro é que todo homem crê que todos os objetos que ele conhece são conhecidos apenas pela força ou natureza deles próprios, mas a verdade é o oposto disso. Pois todo objeto que é conhecido não é compreendido de acordo com sua própria força, e sim de acordo com a natureza daqueles que o conhecem.

Permita-me esclarecer-te isso por um breve exemplo: a esfericidade de um corpo pode ser conhecida de um modo pela visão, de outro pelo toque. A visão pode tomar o corpo todo de uma vez à distância julgando seu raio, enquanto o toque se apega, por assim dizer, ao lado externo da esfera, e do contato com a mão percebe, por meio das partes materiais, a esfericidade do corpo ao deslizar sobre a circunferência real. Um homem é compreendido diferentemente pelos sentidos, pela imaginação, pela razão e pela inteligência. Pois os sentidos distinguem a forma tal como está estabelecida na matéria moldada pela forma; a imaginação distingue a aparência em si, sem a matéria. A razão vai mais longe que a imaginação: por uma contemplação geral e universal, ela investiga o tipo real representado em espécimes individuais. Mais elevada ainda é a visão da inteligência, que alcança a esfera superior do universal e, com o olho desobstruído da mente, contempla a própria forma do tipo em sua absoluta simplicidade. Aqui, o principal ponto de nossa consideração é este: o poder de entendimento superior inclui o inferior, mas o inferior nunca ascende ao superior. Pois os sentidos não são capazes de entender nada além da matéria; a imaginação não pode olhar para tipos universais ou naturais; a razão não pode compreender a forma absoluta; enquanto a inteligência parece olhar de cima para baixo e compreender a forma, e distingue tudo o que jaz abaixo, mas de modo a apreender a própria forma que não poderia ser conhecida a nenhum outro além dela própria. Pois ela percebe e conhece o tipo geral, como faz a razão; a aparência, como faz a imaginação; e a matéria, como fazem os sentidos; mas com uma única apreensão da mente ela olha para todos esses com uma clara concepção do todo. E a razão também, ao ver os tipos gerais, não faz uso da imaginação nem dos sentidos, e contudo percebe tanto os objetos da imaginação quanto os dos sentidos. É a razão que assim define um tipo geral de acordo com sua concepção: o homem, por exemplo, é um animal bípede e racional. Essa é uma noção geral de um tipo natural, mas homem algum conclui que, porque a razão investiga o objeto por meio de uma concepção racional, e não pela imaginação ou pelos sentidos, esse objeto não pode ser abordado pela imaginação e pelos sentidos. Da mesma forma, embora a imaginação se origine da visão e forme aparências a partir dos sentidos, avalia cada objeto sem a ajuda deles, por uma faculdade de distinção imaginativa, não pela faculdade de distinção dos sentidos.

Vês, então, como, no conhecimento de todas as coisas, o sujeito usa seu próprio padrão de capacidade, e não o dos objetos conhecidos? E isso é razoável, pois todo julgamento formado é um ato da pessoa que julga, e portanto cada homem deve necessariamente empreender sua própria ação partindo de sua própria capacidade, e não da capacidade de algum outro. Nos dias antigos o Pórtico de Atenas nos deu homens que enxergavam mal, como se fossem velhos. Eles se convenceram de que as sensações dos sentidos e a imaginação não eram senão impressões feitas por corpos sobre uma mente que nada continha, assim como o antigo costume era de imprimir com ágeis canetas letras sobre a superfície de uma barra de cera que não continha marca alguma. Mas se da mente nada pode brotar com seu próprio esforço; se ela apenas jaz passiva e sujeita às marcas feitas por outros corpos; se ela reflete, como um espelho, os vãos reflexos de outras coisas; de onde cresce na alma um poder de conhecimento tão abrangente? Qual é a força que vê as partes singulares, ou que distingue os fatos que conhece? Qual é a força que reúne as partes que distingue, que toma seu curso na devida ordem, ora ascendendo para combinar as coisas no topo, ora mergulhando entre as coisas inferiores, e então traz a si mesma de volta e, assim examinando, refuta o falso com o verdadeiro? Essa é uma causa de maior poder, de força muito mais eficaz que aquela que apenas recebe as impressões dos corpos materiais. Contudo, a recepção passiva vem primeiro, despertando e atiçando toda a força da mente no corpo vivo. Quando os olhos são atingidos pela luz, ou os ouvidos são golpeados pelo som de uma voz, então a energia do espírito é despertada e, assim movida, convoca formas semelhantes às que sustenta em si mesma, ajusta-as aos sinais exteriores e mistura as formas de sua imaginação às que tem armazenadas dentro de si.

Com relação a sentir os efeitos dos corpos, naturezas que são postas em contato por uma força exterior afetam os órgãos dos sentidos, e o estado passivo do corpo pode preceder a energia ativa do espírito e reclamar para si a atividade da mente; se, então, quando os efeitos dos corpos são sentidos, a mente não é afetada de modo algum por essa recepção passiva, mas declara essa recepção sujeita ao corpo por sua própria força, quanto menos aqueles sujeitos que são livres de ser afetados pelos corpos seguirão objetos externos em suas percepções, e quanto mais tornarão claro o caminho para a ação da mente! Por esse argumento, muitos diferentes modos de entendimento se adequam a coisas de naturezas amplamente diferentes. Pois os sentidos são incapazes de algum conhecimento exceto o seu próprio, e eles se adequam aos seres vivos que são incapazes de movimento como as conchas do mar e outras formas inferiores de vida que vivem agarradas às rochas; enquanto a imaginação é concedida aos animais que têm o poder do movimento, que parecem afetados por algum desejo de buscar ou evitar certas coisas. Mas a razão pertence à raça humana apenas, assim como a verdadeira inteligência é de Deus apenas. Daí se segue que esse último modo de conhecimento é melhor que os outros, pois pode compreender por sua própria natureza não apenas o sujeito peculiar a esse modo, mas também os sujeitos dos outros tipos de conhecimento.

6 comentários:

Hugo disse...

Olá, André!

Cá estou de volta, feliz por ter sido reapresentado a Boécio. Como já ressaltado, a importância histórica de seu trabalho filosófico é inquestionável.

Há alguns elementos na tradução que, na minha modesta opinião, podem ser mais precisos. Procurei uma cópia do "The Consolation of Philosophy", e encontrei no site do Project Gutenberg. Não sei se está completa, pois não pude encontrar o parágrafo que me fez ir em busca da versão inglesa - que foi o do exemplo sobre a esfericidade do corpo, mas já me ajudou em algo.

Eu estava à procura da versão inglesa para "...diferentemente pelos sentidos, pela imaginação, pela razão e pela inteligência". O motivo é que normalmente não é razão e inteligência que são vistos como categorias distintas, mas razão e sabedoria (ou até inteligência e sabedoria, mas não tenho certeza). Diante disso, lembrei do título do seu artigo, e imagino que, talvez, a sua intenção fora traduzir algo como "The True Wisdom", o que me parece mais próximo de "A Verdadeira Sabedoria" - pelo menos é o que pude inferir de uma outra versão inglesa em encontrei, em que se fala bastante de Wisdom (http://www.yorku.ca/inpar/Boethius_Fox.pdf). Talvez haja outros motivos. Mas, se a tradução bíblica que você segue traduz em Provérbios que "o princípio da sabedoria é o temor ao Senhor", imagino que a melhor tradução seria mesmo sabedoria.

Outro pequeno detalhe é o uso de "livre vontade" para a tradução de "free will". Tenho mais simpatia por "livre arbítrio", mas talvez a diferença venha (ou não) de tradição na tradução bíblica.

Bem, acho que já me intrometi demais. Espero que veja com bons olhos minhas sugestões. Obrigado por nos brindar com essa maravilha do pensamento cristão!

Abraço,
Hugo

Hugo disse...

Ops... Encontrei o "Intelligence" na versão inglesa. A sugestão, dessa forma, fica apenas para o "free will".

Abraço,
Hugo

Hugo disse...

E como também não poderia faltar, na versão em latim está presente "intellegentia", a pá de cal sobre minhas ponderações sobre razão e inteligência (será que um dia ainda consigo me preparar de verdade antes de escrever? É quase uma sina!). A versão em latim está em http://www9.georgetown.edu/faculty/jod/boethius/jkok/5p5_t.htm

Prometo ser um pouco mais cauteloso da próxima vez.

André disse...

Olá, Hugo!

Obrigado pela atenção, pela sugestão e pela correção. EU não havia consultado o latim, mas de fato a tradução inglesa que li traz "intelligence", e acho que tem mais a ver com o contexto que "sabedoria", pois é o ato cognitivo (de Deus, especialmente) que está em discussão. Mas devo dizer - e eu devia ter dito isso no próprio post, para facilitar sua vida - que a tradução que li é de W. V. Cooper, e data de 1902. Não me lembro mais ao certo onde a encontrei, mas creio que foi no site Christian Classics Ethereal Library. É um site muito bom, que recomendo, caso você não conheça: http://www.ccel.org/ .

Obrigado pelo link do texto em latim. Como eu disse no post, não domino a língua, mas quem sabe um dia... De qualquer modo, conheço gente que talvez se interesse em dar uma olhada.

Quanto ao "free will", estou ciente de que a tradução clássica é "livre arbítrio". Optei, porém, pelo uso de "livre vontade" apenas porque, em outras partes, o autor pode usar (não verifiquei se de fato usou nesse trecho específico que traduzi) a palavra "will" sem a antecedente "free", mas querendo com isso se referir ao mesmo objeto. E eu não quis correr o risco de traduzir essas ocorrências isoladas como "vontade", que seria a opção natural, e dar ao leitor a impressão de que duas coisas diferentes estavam na mente do autor ou do primeiro tradutor. Mas nem por isso deixo de admitir a possibilidade de ter feito uma má escolha. Vou pensar a respeito.

Abraços, e obrigado mais uma vez!

Hugo disse...

André,

Tenho que admitir que nunca será uma boa opção se guiar pelo meu conhecimento de latim. Entretanto, me parece que o trecho que você traduziu é a Prosa 4, começando pelo trecho 4 (http://www9.georgetown.edu/faculty/jod/boethius/jkok/5p4_t.htm).

Lá no texto em latim, diz:

"...praescientiam non esse futuris rebus causam necessitatis existimat nihil impediri praescientia arbitrii libertatem putat."

Se eu lhe disser que entendo o que está aí acima estarei mentindo. Mas dá para reconhecer algumas palavras, e com a ajuda do Google Translator (pois é, ele reconhece latim!), bem, não se vai muito longe, é uma bagunça danada! De qualquer forma, o "arbitrii libertatem", está lá, o que me parece ser um argumento importante em prol do uso de "livre arbítrio".

Se, por acaso, você quiser confrontar sua tradução com uma tradução diretamente do latim, há a tradução de Willian Li, publicada pela Editora Martins Fontes. Só que, nesse caso, você teria que comprar o livro, e, é claro, isso tiraria toda a graça de se dedicar a traduzir o texto.

Abraço,
Hugo

André disse...

Caro Hugo,

O argumento levantado por você não é conclusivo, pois o aspecto semântico nem sempre segue diretamente o etimológico. Mas é bem possível que você tenha razão. De qualquer modo, seu comentário vai ficar aí para indicar essa possibilidade aos leitores que passarem por aqui.

Não vou comprar a tradução de Willian Li por enquanto, já que faz pouco tempo que terminei de ler o livro. Mas provavelmente a comprarei no futuro, quando voltar ao assunto, coisa que está nos meus planos. Eu não copio traduções de outros, especialmente de livros, porque não sei como funcionam as leis de direitos "tradutorais". Mas fiquei feliz em saber que existe uma tradução em português.

Muito obrigado pela indicação e por toda a atenção dedicada a este post, que certamente serviu para enriquecê-lo. Abraços!