11 de setembro de 2011

Sutilezas causais - parte 4

Esta é a segunda postagem sobre o segundo capítulo do livro A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna, de R. K. McGregor Wright, intitulado A incoerência da teoria do livre-arbítrio. Na primeira parte expus o que me pareceu verdadeiro nesse capítulo, denunciei a falta de rigor filosófico de Wright e contestei a validade de seu argumento principal. Na segunda e na terceira partes respondi aos comentários do Dr. Alan Myatt acerca da primeira. Agora, voltando desse interlúdio, darei continuidade ao empreendimento inicial ao mostrar, contrariando as pretensões do autor, que existe ao menos a possibilidade historicamente concretizada de outras visões dentro da teologia e da filosofia reformadas. E farei isso analisando sua crítica ao posicionamento de William Shedd, um importante teólogo calvinista do século XIX, tal como se encontra delineado em sua Teologia sistemática. Wright diz sobre Shedd:

"Ele enfatiza detalhadamente que o conceito de uma vontade indeterminada é uma autocontradição. Ele desce aos mínimos pormenores para explicar como a vontade deve ter suas raízes na causação moral a fim de produzir caráter. [...] Ele diz que Anselmo faz uma distinção entre uma 'necessidade antecedente' e uma 'necessidade subsequente', que ele supõe poder ajudar-nos a entender 'o automovimento e a responsabilidade da vontade escravizada'. [...] Shedd continua: 'Aplicando essa distinção à queda da raça humana em Adão, não havia nenhuma necessidade antecedente de que essa queda da raça ocorreria. Foi deixado à autodeterminação da vontade humana que ela ocorresse.' Em outras palavras, na sua ânsia por preservar algum tipo de autodeterminação para a vontade, Shedd finalmente admite que as ações da vontade são não-causadas. [...] Shedd é um dos calvinistas típicos que sustentam uma boa visão da soberania de Deus, mas não querem abandonar algo do livre-arbítrio que torna, em última instância, o pensamento deles indistinguível do indeterminismo arminiano. Eles podem tentar encobrir suas ideias com palavras como mistério, paradoxo ou antinomia, mas, no final das contas, uma contradição permanece."


O juízo acima proferido contra Shedd me parece grosseiramente injusto, por três razões. A primeira delas é que o exposto de modo algum justifica a acusação de que o pensamento de Shedd é indistinguível do arminianismo, ainda que apenas "em última instância". Wright tem certa mania de exagerar tudo, parecendo insensível a sutilezas. Ele dividiu o mundo entre os que concordam com ele em todos os detalhes, quanto ao assunto em questão, e os demais, que são, assim, indistinguíveis. Esse não é um bom hábito mental.


A segunda razão é que a exposição do pensamento de Shedd também não justifica qualquer menção a "mistério, paradoxo ou antinomia". Shedd claramente não fez uso de nada disso; ao contrário, ele buscou - e julgou ter encontrado - uma solução racional para o problema. Talvez se possa dizer que a solução que ele encontrou não é válida; nesse caso, caberia a Wright demonstrar isso, coisa que ele não fez. De qualquer modo, o fato é que em lugar algum, a julgar pela descrição de sua argumentação dada pelo próprio Wright, Shedd apelou a um "mistério, paradoxo ou antinomia". Aqui a capacidade de leitura de Wright foi prejudicada pelo que ele andou lendo em outros lugares.


E, finalmente, a descrição que Wright faz "em outras palavras" da posição de Shedd não corresponde às palavras em si. Dizer que a Queda foi causada pela "autodeterminação da vontade humana" não é o mesmo que dizer que "as ações da vontade são não-causadas". Aqui Wright se baseia em uma pressuposição implícita, a qual não é compartilhada por Shedd: a de que livre-arbítrio é sinônimo de acaso, entendido como ausência de causa. Na verdade, porém, Shedd está apenas dizendo que a Queda não brotou espontaneamente do estado anterior do universo. Quem considera o conceito de causalidade ligado de modo intrínseco à sucessão temporal, de maneira que a causa de um evento necessariamente se situa antes dele no tempo, é o próprio Wright. Ao descrever a visão de Shedd segundo categorias que, na verdade, representam apenas suas próprias concepções prévias, ele se privou da oportunidade de sequer entender o que disse o velho teólogo. Sem isso, seu desacordo não vale nada, e seu julgamento vale ainda menos.


Vai ao encontro das declarações de Shedd, acima transcritas, o pensamento de Alvin Plantinga, filósofo reformado ainda vivo que se expressou melhor do que eu seria capaz. Eu ainda não o havia lido quando formulei minhas conclusões sobre o segundo capítulo de A soberania banida, mas ao lê-lo, meses mais tarde, fui por ele ajudado a ver o problema de modo mais claro. Plantinga trata do assunto no artigo Conselhos aos filósofos cristãos, cuja tradução foi revisada e publicada pelo meu amigo Roberto Vargas Jr. aqui. O texto todo é muito interessante, e recomendo entusiasticamente sua leitura a todos os interessados em compreender algumas ênfases da filosofia reformada, em especial no que tange ao pressuposicionalismo. Mas a questão da liberdade humana é abordada de modo mais específico na quarta seção, intitulada Teísmo e as pessoas. Ali, em meio a outras coisas, Plantinga diz o seguinte:


"O que está realmente em questão nessa discussão é a noção de agente causal: a noção de uma pessoa como fonte última de uma ação. De acordo com os partidários do agente causal, alguns eventos são causados, não por outros eventos, mas por substâncias, objetos - tipicamente agentes pessoais. E, pelo menos desde a época de David Hume, a ideia de agente causal tem se enfraquecido. É justo dizer, eu acho, que a maioria dos filósofos cristãos que trabalham nesta área rejeita o agente causal completamente ou suspeita desta ideia. Eles veem a causação como uma relação entre eventos; eles conseguem entender como um evento causa outro evento, ou como eventos de um tipo podem causar eventos de outro tipo. Mas a ideia de uma pessoa, digamos, causando um evento, lhes parece ininteligível, a menos que possa ser analisada, de alguma forma, em termos de evento causal. É claro que é essa devoção ao evento causal que explica a alegação de que, se você realiza uma ação sem ter sido levado a isso de modo causal, então sua ação é obra do acaso. Pois se eu afirmar que toda causação é, em última análise, um evento causal, então suporei que, se você realiza uma ação sem ter sido levado a isso de modo causal por eventos prévios, então sua realização da ação não é causada e é, portanto, obra do acaso."


Considero esse trecho útil por duas razões. A primeira é que ele explica onde reside o erro filosófico de quantos pensam como Wright no que diz respeito à dualidade "acaso e causa": no ato de, reduzindo tudo a eventos, ignorar justamente os elementos mais pessoais da realidade criada. A segunda razão é que Plantinga vai além disso, identificando, na história da filosofia, a fonte da qual se disseminou o erro em questão: a obra do agnóstico empirista David Hume. É desnecessário dizer que semelhante figura jamais deveria ser seguida pelos filósofos cristãos, reformados ou não, de modo tão acrítico. E tamanha semelhança entre seu pensamento e o de autores como Wright é apenas um indício adicional do racionalismo que venho enxergando e denunciando nessa escola.


Há ainda dois problemas que merecem menção no segundo capítulo. Um deles se manifesta neste trecho:


"O arminiano pode objetar com C. S. Lewis que Deus, estando 'fora do tempo', simplesmente veria os acontecimentos coincidindo com o caminho e feito a predição com base na sua presciência, do modo como teríamos presciência de como um filme termina por ver o roteiro do filme. O calvinista é, então, levado a perguntar: quem criou esse futuro que Deus é capaz de ver antecipadamente? Deus obteve esse conhecimento do mundo do mesmo modo que o empirista o obtém? [...] Se o futuro já existe em algum sentido na mente de Deus, é esse conhecimento certo e verdadeiro?"


Eu concordo em alguma medida com esse argumento, pois a cosmovisão de Lewis não é capaz de fazer justiça ao decreto divino. Contudo, Wright deseja levar o leitor a concluir que a presciência divina elimina a possibilidade da liberdade humana, visto que Deus não poderia prever algo que tem em si a possibilidade intrínseca de ocorrer de outro modo. O problema é que Boécio já havia respondido a isso com mais de um milênio de antecedência, ao defender filosoficamente que o que pode ou não ser conhecido sobre um ente não é determinado por sua própria ontologia, e sim pelas faculdades cognitivas do sujeito cognoscente. Talvez haja em algum lugar uma resposta convincente a esse argumento, mas o livro de Wright não é esse lugar. Aliás, o nome de Boécio sequer consta entre as dezenas de nomes ilustres envolvidos nessa controvérsia e citados no fim do livro ou na introdução histórica do capítulo inicial. Meu propósito com esta reclamação não é tanto o de endossar as posições de Boécio ou Lewis (que rejeito em boa parte) quanto o de enfatizar que parece, em certos momentos, que Wright tem um conhecimento demasiado superficial da história dos debates em torno do tema de seu livro. Não afirmo que isso seja um fato. Mas afirmo que faltaram no livro as evidências de que ele possui tal conhecimento.


Um último problema é que, embora levante argumentos que se opõem a todo tipo de liberdade, como esse que mencionei por último, Wright, mui contraditoriamente, afirma defender a inexistência da liberdade humana apenas no domínio espiritual, no autêntico sentido da palavra. É mais uma situação em que ele raciocina ou se expressa mal. Depois de criticar meio mundo calvinista por não levar sua teologia às últimas consequências, ele aparece com um papo que qualquer calvinista poderia endossar. O problema é conciliar isso com o restante do que ele mesmo disse. Transcrevo o trecho para que o leitor possa constatar isso por si:


"O calvinista prontamente concorda que é óbvio que façamos escolhas reais e que, portanto, a vontade existe como uma capacidade de tomar decisões. [...] Pode ser dito que a vontade é livre para realizar algumas escolhas, mas não outras. A maioria dos calvinistas concorda com Martinho Lutero que nós somos livres para fazer muitas coisas 'dentro do mundo'. Essas coisas incluiriam comer e jejuar, escolher café em vez de chá para a refeição matinal ou fazer um curso sobre história francesa em vez de história da Rússia. Contudo, quando entramos na esfera das coisas espirituais, somos muito mais limitados, não possuindo capacidade espiritual nem mesmo para entender o que Deus quer, muito menos o poder de fazê-lo."


Para concluir estas minhas considerações, retornarei ao comentário de Wright acerca de Shedd. Wright reconhece que a leitura de Shedd provoca no leitor a sensação de que ele "foi uma das mentes mais sutis que já escreveram sobre esse assunto". Nunca li as obras de Shedd diretamente, mas, em vista da grande quantidade de provas de que o próprio Wright não possui nada parecido com uma mente tão sutil, acho justo dar um voto de confiança ao primeiro e não tomar o último como autoridade no assunto. Infelizmente, essa comparação, desvantajosa para o autor de A soberania banida, ressalta de modo nítido aquele que é, por todas as razões que expus, o aspecto mais notório do capítulo em questão.

3 comentários:

Mulher na Polícia disse...

Oi André...

Como é que a gente pune um criminoso se não há livre-arbítrio?

: )

Beijo!

André disse...

Oi, Novinha! Bom te ver por aqui de novo.

Veja: o termo livre-arbítrio é usado às vezes, nos debates entre arminianos e calvinistas, para descrever a iniciativa humana na salvação. Há quem creia que, de certa forma, o homem tem o poder de tomar a iniciativa para a reconciliação com Deus. Sendo calvinista, eu não creio nisso. Mas há calvinistas que vão muito além, e negam todo e qualquer tipo de liberdade para o homem. Nesse que é o sentido mais comum do termo "livre-arbítrio", eu estou contra eles e do lado de certos outros calvinistas. Por isso, sua pergunta é um problema para outros, não para mim. Talvez os que negam o livre-arbítrio no sentido amplo digam a você para não se preocupar com isso, já que ninguém tem liberdade para decidir se pune ou não o criminoso. hehehe

Beijos!

Mulher na Polícia disse...

Uahahahaha!

Caramba! kkkkkkkkkkkkkk

Era uma resposta tão óbvia!!!

hehehehe

Valeu!