23 de dezembro de 2011

Dois velhos e um poeta

Estamos chegando ao quinto Natal deste blog. Em três das quatro oportunidades anteriores, fiz posts propícios à ocasião; apenas em 2009 a data passou em branco. Este Natal ia entrar para essa segunda categoria, pelo simples motivo de que não me ocorrera nada de interessante para escrever. Mas, durante o culto dominical de que participamos no último dia 11, voltou à minha mente com força e clareza especialmente intensas uma reflexão já meio antiga, e percebi que chegara o momento de escrever a respeito.

O que aconteceu no referido culto é que foi lido o texto bíblico de Lucas 2.25-35, que na minha versão recebeu o título O cântico de Simeão. Trata-se de um trecho que sempre considerei particularmente belo e tocante. E, com isso, veio à minha memória um poema de T. S. Eliot inspirado nessa mesma passagem bíblica. Creio que a maioria dos meus leitores tem conhecimento da admiração que dedico a Eliot como poeta, dramaturgo, crítico literário e teórico da cultura. Inclusive, já dediquei um post a um de seus poemas em um Natal anterior, o de 2008. Não é, portanto, sem respeito que mantenho, ao mesmo tempo, desacordos quanto a certos aspectos de sua obra. O poema que mencionei tem algo que sempre me incomodou, mas que demorei para conseguir detectar e descrever com clareza. Esse longo processo se completou no último dia 11, e é em torno disso que pretendo construir minha mensagem de Natal deste ano.

O poema está transcrito abaixo; a tradução foi feita pelo célebre Ivan Junqueira, exceto em dois pontos nos quais, em minha opinião, ele cometeu equívocos que comprometem a integridade do texto lírico. Identifiquei esses pontos com asteriscos, e expliquei as razões de meu desacordo com Junqueira em notas apropriadas. Mas esse aspecto é apenas acessório. Antes de apresentar o próprio poema, transcrevo o trecho bíblico correspondente, pensando sobretudo nos leitores pouco familiarizados com as Escrituras. O poema de Eliot contém tantas alusões e paráfrases desse trecho (e também de alguns outros textos) que sua leitura ficaria consideravelmente empobrecida sem o conhecimento prévio do texto de Lucas. Logo depois da passagem bíblica, transcreverei o poema, e depois farei alguns comentários. A título de introdução, basta esclarecer que o episódio narrado se passou quando o Senhor Jesus ainda era bebê, e José e Maria o levaram ao templo de Jerusalém pela primeira vez. Foi ali que encontraram Simeão.

"Havia em Jerusalém um homem chamado Simeão; homem este justo e piedoso que esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele. Revelara-lhe o Espírito Santo que não passaria pela morte antes de ver o Cristo do Senhor. Movido pelo Espírito, foi ao templo; e, quando os pais trouxeram o menino Jesus para fazerem com ele o que a lei ordenava, Simeão o tomou nos braços e louvou a Deus, dizendo: 'Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque os meus olhos já viram a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos: luz para revelação aos gentios, e para glória do teu povo de Israel'. E estavam o pai e a mãe do menino admirados do que dele se dizia. Simeão os abençoou e disse a Maria, mãe do menino: 'Eis que este menino está destinado tanto para ruína quanto para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de contradição (também uma espada traspassará a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações'."

A Song for Simeon

Lord, the Roman hyacinths are blooming in bowls and
The winter sun creeps by the snow hills;
The stubborn season has made stand.
My life is light, waiting for the death wind,
Like a feather on the back of my hand.
Dust in sunlight and memory in corners
Wait for the wind that chills towards the dead land.

Grant us thy peace.
I have walked many years in this city,
Kept faith and fast, provided for the poor,
Have taken and given honour and ease.
There went never any rejected from my door.
Who shall remember my house, where shall live my children’s children
When the time of sorrow is come?
They will take to the goat’s path, and the fox’s home,
Fleeing from the foreign faces and the foreign swords.

Before the time of cords and scourges and lamentation
Grant us thy peace.
Before the stations of the mountain of desolation,
Before the certain hour of maternal sorrow,
Now at this birth season of decease,
Let the Infant, the still unspeaking and unspoken Word,
Grant Israel’s consolation
To one who has eighty years and no to-morrow.

According to thy word.
They shall praise Thee and suffer in every generation
With glory and derision,
Light upon light, mounting the saints’ stair.
Not for me the martyrdom, the ecstasy of thought and prayer,
Not for me the ultimate vision.

Grant me thy peace.
(And a sword shall pierce thy heart,
Thine also).
I am tired with my own life and the lives of those after me,
I am dying in my own death and the deaths of those after me.
Let thy servant depart,
Having seen thy salvation.

Um cântico para Simeão

Senhor, os jacintos romanos estão florindo nos vasos
e o sol do inverno resvala sobre as colinas de neve.
Rendeu-se a quadra obstinada.
Minha vida é leve, à espera do sopro da morte,*
tal uma pluma no dorso de minha mão.
A poeira entre os raios de sol e a memória nos cantos
aguardam o vento que esfria rumo à terra morta.

Concede-nos tua paz.
Muitos anos caminhei nesta cidade,
guardei fé e jejum, poupei para os pobres,
dei e recebi honra e conforto.
Ninguém jamais repeli de minha porta.
Quem se recordará de minha casa, onde viverão os filhos de meus filhos
quando vier o tempo do infortúnio?
Buscarão eles a trilha da cabra e a toca da raposa,
esquivando-se às faces e às espadas forasteiras.

Antes do tempo das cordas e dos flagelos e dos lamentos
concede-nos tua paz.
Antes das estações na montanha da desolação,
antes da hora certa da aflição materna,
agora, nesta quadra em que a morte se avizinha,
possa o Infante, o Verbo que ainda não falou nem foi falado,**
conceder a consolação de Israel
a quem tem oitenta anos e nenhum amanhã.

Conforme tua palavra.
Eles Te haverão de exaltar e de sofrer em cada geração
com glória e escárnio,
luz sobre luz, galgando a escada dos santos.
Não para mim o martírio, o êxtase do pensamento e da prece,
não para mim a última visão.

Concede-me tua paz.
(E uma espada trespassará teu coração,
o teu também.)
Estou cansado de minha vida e da vida dos que virão depois de mim,
estou morrendo de minha morte e da morte dos que virão depois de mim.
Deixa partir teu servo,
após ter visto tua salvação.

*: Junqueira traduziu o início desse verso como "minha vida é luz". Mas o restante do verso e o seguinte, ao comparar a vida a uma pena que cai ao menor sopro, mostra claramente que a intenção do poeta é aludir à leveza de sua vida. Aqui, portanto, "light" não é o substantivo "luz", e sim o adjetivo "leve".

**: O original diz
"the still unspeaking and unspoken Word". "Unspoken" é algo que não foi falado, mas "unspeaking" é alguém que não fala. Como se vê, Eliot se vale do duplo sentido do termo "Verbo", que é aplicado a Cristo nas Escrituras: como Verbo, portador da revelação de Deus, ele ainda não foi revelado; e, como ser humano, é bebê e ainda não fala. Ao traduzir como "inexpresso e impronunciado", Junqueira introduziu no poema uma redundância empobrecedora, que perde de vista o duplo caráter do Verbo, pretendido pelo poeta.

Além da beleza e da profundidade, que evidenciam a genialidade do poeta, creio que a primeira coisa que chama a atenção no poema é que, se comparado à narrativa bíblica, ele contém uma porção de acréscimos: em sua oração, o Simeão de Eliot discorre sobre o jugo estrangeiro que pesava então sobre seu povo, antevê as horrendas consequências, para seus descendentes, da guerra contra o Império Romano que tomaria lugar sete décadas mais tarde (e talvez os infortúnios milenares do povo judeu em geral), e vislumbra também a superioridade do novo pacto sobre o antigo, do permanente sobre o provisório, do cristianismo sobre o judaísmo, do Evangelho sobre a Lei. É claro que não condeno de modo algum essa liberdade poética, inclusive porque o Simeão bíblico também tem, de um modo menos explícito, todas essas percepções. Apesar disso, esses conteúdos são parte do problema, de algum modo menos direto, e pretendo explicar por que penso assim. No poema, ao mesmo tempo em que há esse olhar voltado para o futuro, também está presente uma atenção contínua de Simeão sobre si mesmo enquanto ausente desse futuro. O ancião lamenta sua velhice, com a consequente impossibilidade tomar parte na nova dispensação, e declara-se cansado da existência incompleta na antiga, na qual, a despeito de sua vida piedosa, resta apenas a exaustão de quem prefere, diante das circunstâncias, o repouso da morte.

Contrasta nitidamente com esse espírito o do Simeão histórico. Em vez de ter dito "Deixa partir teu servo, após ter visto tua salvação", como o Simeão do poema, o que ele disse foi: "Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque os meus olhos já viram a tua salvação". A compactação poética deixou de lado pelo menos dois elementos deveras relevantes, que distorcem a mensagem em uma mesma direção. Primeiro, a submissão à manifesta vontade divina, "podes despedir [...], segundo a tua Palavra", se transformou em uma súplica quase desesperada: "Deixa partir". Nada no texto bíblico indica que Simeão estivesse insatisfeito com a vida. Mas, no poema de Eliot, nada indica que lhe restasse alguma satisfação. Isso me incomoda profundamente, e esse incômodo é reforçado pela segunda omissão: o Simeão bíblico diz "podes despedir em paz o teu servo". Não há essa paz no poema, a não ser como uma coisa três vezes pedida, mas não alcançada, restando apenas uma autocomiseração incompatível com a alegria de ser um servo daquele Senhor.

Alegria, eis a palavra-chave. O texto bíblico nos diz que Simeão recebera de Deus a promessa de não morrer sem contemplar o Messias com seus próprios olhos. Não nos é dito quanto tempo ele aguardou o cumprimento dessa promessa, se um único dia ou uma vida inteira. Mas ele "esperava a consolação de Israel" e sabia como ela viria; podemos estar certos de que contemplar o Cristo do Senhor era seu maior anseio. Quando, enfim, essa expectativa é satisfeita, não o vemos perdido em lamúrias ou divagações de qualquer espécie; muito ao contrário, a passagem nos diz que "Simeão o tomou nos braços e louvou a Deus". O texto bíblico transmite alegria intensa, empolgação incontida, louvor esparramado, lágrimas de gratidão escorrendo profusamente pelas faces enrugadas e descendo até uma barba grisalha. Aquele momento foi, sem dúvida, o ponto mais alto da vida desse justo.

Simeão não é mencionado em nenhuma outra parte das Escrituras, mas, nesse breve registro, Deus nos deixou um modelo de piedade, esperança, gratidão e senso de prioridade. Um exemplo de como Cristo deve e quer ser recebido. Não sejamos como o Simeão de Eliot, que, tendo Cristo em seus braços, distraiu-se miseravelmente em exaltar o passado, lamentar o presente e temer o futuro, perdendo-se em considerações sobre si mesmo, sobre os outros, sobre política - enfim, sobre tudo, menos sobre a Pessoa divina em cuja presença estava, e que deveria ocupar o centro de sua atenção, bem como de sua vida. Sejamos, ao contrário, como o Simeão histórico, o de Lucas, o das Escrituras, recebendo Cristo com a alegria que ele merece e dando-lhe, em nosso coração e em nossa vida, o lugar que é dele por direito. Que possamos aprender, cada vez mais, a tomar o menino Jesus nos braços com a devida reverência, e a depositar aos pés do Jesus crescido, humilhado e exaltado, todos os temores, frustrações e inquietações de que ele prometeu nos aliviar. O velho Simeão teve, nesta vida, uma única oportunidade de estar com Cristo, e aproveitou-a muito bem. Que não desperdicemos nossas oportunidades, que não sabemos quantas serão. Que, neste Natal, ao comparecer à presença de Cristo e olhar para ele, o vejamos como ele é, e nada menos que isso.

Feliz Natal a todos!

3 comentários:

Jorge Fernandes Isah disse...

André,

Eliot é dez! Um dos meus preferidos, senão, o preferido.

Este foi o segundo poema de Eliot que li, o primeiro foi "Homens Ocos", e depois dele, decidi comprar o livro "Poesia", com tradução do Junqueira. É um livro para se ler umas mil vezes e se surpreender a cada uma delas [ainda que eu tenha lido-o duas ou três apenas].

Gostei muito do seu texto, pois me fez ver algumas coisas que não vi ou li e, que, provavelmente, jamais veria ou leria.

Terei de caminhar umas "trocentas" léguas para alcançá-lo, mas o problema é que você caminha muito mais rápido do que eu... [rsrs].

Grande abraço!

Cristo o abençoe!

Felipe disse...

Clap, clap, clap. Muito bom!

Conheço pouco sobre Eliot, mas estou namorando este livro:

A Era de T. S. Eliot

Só falta um pouco de coragem para comprar. A É Realizações tem livros espetaculares, mas o preço é amargo.

Um abraço e feliz Natal!
Felipe Sabino

André disse...

Caro Jorge, concordo plenamente com seus comentários sobre Eliot. Quanto às léguas, não sei se é verdade que caminho mais rápido que você. De qualquer modo, Deus abençoará os esforços de nós todos.

Caro Felipe, estamos na mesma situação quanto a esse livro. hehe

Fico feliz que tenham gostado do post. Feliz Natal e abraços a ambos!