25 de abril de 2013

Deveres sem pessoas - parte 4

Na última parte desta minha série de comentários ao artigo A autonomia da ética, do Dr. David O. Brink, resumi sua descrição do assim chamado "dilema de Eutífron". Em [3.1], o autor transfere para o Deus judaico-cristão o mesmo problema: a "doutrina dos mandamentos divinos [...] tanto admite uma interpretação voluntarista quanto uma interpretação naturalista, e o debate entre ambas tem uma história ilustre". Em [3.2] e [3.3], Brink cita Guilherme de Ockham e Tomás de Aquino como filósofos cristãos defensores do voluntarismo e do naturalismo, respectivamente.
 
Embora eu veja valor considerável na escolástica, não sou adepto dela, seja em sua vertente tomista, ockhamista ou qualquer outra. Também não sou autoridade no assunto, e admito que li pouco de Aquino e Ockham diretamente; não descarto, inclusive, a possibilidade de o Dr. Brink tê-los lido bem mais que eu. (Aliás, uma das minhas divergências em relação aos materialistas modernos é quanto à intensidade de nossa dependência da autoridade de outrem para conhecer as coisas.) Não obstante, tenho razões seguras para crer que ele não entendeu bem os dois filósofos medievais citados, e dedicarei a presente postagem a isso, não em virtude de minha admiração parcial por eles, e sim porque tais incompreensões me parecem conter indícios importantes de sua profunda dificuldade de entender o próprio cristianismo.

Comecemos por Ockham. Em [3.3], Brink diz que ele, como representante ilustre do voluntarismo, faz "o valor moral de algo consistir nas atitudes de Deus; não haveria atributos morais não fosse a vontade de Deus". O autor faz do voluntarismo "teísta" o vilão desta seção, por considerá-lo equivalente à ideia de que Deus é o fundamento metafísico da moralidade. Quatro argumentos são levantados:

1. Em [4.1], o autor adapta o argumento de Platão: "ao que parece, Deus amaria coisas boas por serem boas. As suas atitudes basear-se-iam em princípios. Se isto for verdade, o carácter que as coisas boas têm de serem aprovadas por Deus dependeria de serem boas, e não vice-versa." Eu já disse algo sobre esse argumento, e direi mais no futuro. Por enquanto, note-se apenas a ênfase na palavra "princípios"; brotam daí os próximos dois argumentos.

2. Em [4.2]: "O voluntarismo implica que todas as verdades morais dependem do que Deus por acaso aprova. [...] Assim, por exemplo, caso Deus não tivesse condenado o genocídio e a violação, estas coisas não teriam sido incorrectas, ou ter-se-iam tornado moralmente aceitáveis, caso Deus tivesse acabado por aprová-las. Mas [...] este tipo de conduta parece necessariamente incorrecto."

3. Em [4.3]: "Na verdade, parece que o voluntarista teria de entender a bondade de Deus como a sua aprovação de si próprio. Mas essa aprovação seria igualmente arbitrária e contingente. Se [...] a sua auto-aprovação reflecte uma percepção do seu próprio valor, então as suas atitudes pressupõem o que é de valor, em vez de o constituírem. A perspectiva voluntarista consistente da bondade do próprio Deus é problemática."

4. Em [4.4], um longo argumento é exposto. Creio que o exemplo a seguir é suficiente para tornar clara sua ideia: "[A] injustiça racial do sistema de apartheid sobrevinha de um conjunto complexo de restrições legais, politicas, sociais e económicas às oportunidades dos sul-africanos negros e de uma cultura de atitudes discriminatórias para com eles. Qualquer sistema social qualitativamente idêntico em todos os aspectos naturais a este sistema de apartheid seria também injusto, e qualquer sistema social que contivesse brancos e negros e que não fosse injusto teria de diferir em algumas das suas propriedades naturais (legais, políticas, sociais, económicas e psicológicas) do sistema de apartheid. Mas se as propriedades naturais de uma situação determinam as suas propriedades morais, então as suas propriedades morais não podem depender da vontade de Deus. Pois se o voluntarismo fosse verdadeiro, então duas situações poderiam ter propriedades morais diferentes mesmo que não existissem quaisquer diferenças naturais entre si. Um sistema de apartheid poderia ser injusto, mas um clone completo desse sistema não teria de ser injusto — se as atitudes de Deus perante os dois casos do mesmo tipo fossem diferentes."

Embora esse último argumento seja o mais sofisticado dos quatro, acredito que é também o mais fraco, pois, mesmo que se conceda a arbitrariedade moral de Deus, o argumento a torna maior que o necessário. Ainda que Deus seja arbitrário na escolha dos princípios morais com base nos quais julgará as situações, isso não o impede de ser coerente com os princípios já escolhidos e, dessa forma, julgar todas as situações objetivamente do mesmo modo. Além disso, mesmo o voluntarista mais extremado não precisa negar que a lei de Deus pode estar inscrita na natureza das coisas, uma vez que Deus é o Criador delas (retornarei a esse ponto adiante). A trincheira que o autor cava entre as "propriedades naturais" das situações e os padrões morais de Deus também contém, ironicamente, certa dose de arbitrariedade.

De qualquer modo, a arbitrariedade de Deus, no sentido da falta de critérios ou "princípios", está na raiz de todas as críticas do Dr. Brink ao voluntarismo. E, já que ele citou Ockham como defensor típico da tese criticada, convém mostrar que essa descrição não é acurada. Já se vão uns sete anos desde que li a excelente História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa, de Philoteus Boehner e Étienne Gilson, da qual certamente já esqueci muita coisa. Um de seus poucos defeitos é não traduzir as abundantes citações em latim (defeito só superado pelas citações intraduzidas da Teologia sistemática de Louis Berkhof, que estão em holandês); embora eu creia que entendi boa parte das citações de Ockham, não me aventurarei a traduzi-las de um idioma que não domino. Com isso, seremos obrigados a ficar apenas com trechos da exposição dos próprios autores sobre o pensamento do velho franciscano (os destaques são dos autores):

"No âmbito criatural não há lugar para qualquer 'necessidade das essências', à qual Deus tivesse que sujeitar-se. Antes, as essências são ideadas por Deus e livremente intencionadas e criadas por Ele. Entretanto, seria errôneo interpretar esta liberdade no sentido de um arbítrio puro e simples, como infelizmente se tem feito não raras vezes. Pois também em Deus há uma certa obrigação moral; mas esta não lhe vem da criatura, e sim dele próprio, exclusivamente. [...] A norma derradeira da moralidade de um ato não pode encontrar-se fora de Deus; e, sobretudo, não pode encontrar-se fora da vontade divina. O que Deus quer é bom porque Deus o quer [...]. Para compreender esta asserção, é necessário lembrar que, para Guilherme, a vontade não significa algo de distinto em Deus, senão que é idêntica à mesma essência divina [...]. Ora, [...] a criação das coisas é precedida por sua 'excogitação' e criação no intelecto divino sob a forma de conteúdos mentais. Este pensar ideativo de Deus é também a norma das essências e, portanto, do agir das criaturas, visto que a vontade de Deus se conforma ao seu conhecimento. Mas Deus é um ser que age racionalmente; logo, também o seu querer é um querer racional [...]. Portanto, o seu intelecto é a norma orientadora da sua vontade. Por isso a liberdade divina não é puramente arbitrária. Há uma 'obrigatoriedade' em Deus; ele não pode querer, nem portanto prescrever, o que envolve contradição. [...] Ockham quer atalhar o racionalismo excessivo, que transforma, com demasiada precipitação, as razões de congruência em razões de necessidade [...]. Do exposto se vê que a ética de Ockham está longe de ser uma simples imposição de um querer cego, a que a vontade humana deve conformar-se; é certo, porém, que ela implica uma ancoragem mais forte da moralidade na esfera pessoal, ao invés de baseá-la na esfera anônima da 'recta ratio' ou da natureza, e do agir conforme à natureza."

Não é difícil ver que, isoladamente, algumas sentenças de Boehner e Gilson tornam Ockham semelhante à descrição que Brink faz dele. Mas o conjunto deixa claro que este desvinculou indevidamente a vontade divina de sua essência, conhecimento e razão, que são inseparáveis no pensamento do escolástico. O fruto de tal separação já não é um ser pessoal, e sim um Fado, de modo que já não corresponde ao Deus bíblico, e tampouco ao escolástico. O autor não entendeu bem as sutilezas dos posicionamentos filosóficos de Ockham, nem demonstrou a necessária sensibilidade às suas motivações. Resultou de tudo isso uma caricatura simplória do pensamento do franciscano. Deve ser dito em defesa de Brink que de fato existem cristãos cujas ideias sobre o tema são muito bem descritas por essa caricatura. E também que as palavras de Boehner e Gilson patenteiam que essa leitura equivocada é também a de muitos outros. Mas, do ponto de vista do tema do artigo, não se pode dizer seriamente que Brink chegou a refutar o voluntarismo "teísta", pois fazer isso equivaleria a refutar nada menos que o melhor voluntarismo "teísta" disponível, que o autor sequer chegou a compreender e representar de modo adequado. A afirmação de que "não haveria atributos morais não fosse a vontade de Deus" é imprecisa e simplista; para Ockham, a despeito de suas ênfases, o fundamento da moral não é arbitrário, e sim a natureza de um Absoluto pessoal.

Tudo isso é ruim, mas o entendimento do Dr. Brink sobre o pensamento de Tomás de Aquino me parece ainda pior. Em [3.2], o fundador do tomismo é descrito como um adepto do naturalismo que, como tal, 1. "aceita a autonomia da ética", 2. afirma "que as propriedades morais de pessoas e situações dependem da sua natureza" e, assim, 3. "nega efectivamente ao teísmo um papel metafísico". Para o naturalismo ético, 4. "as qualidades morais não pressupõem um Deus, apesar de um Deus perfeitamente sábio e bom aprovar todas as coisas boas e correctas, e apenas essas coisas". Conheço o tomismo um pouco melhor que o ockhamismo, e estou certo de que todos esses itens contradizem frontalmente o pensamento de Tomás. Por essa caracterização, Tomás não era um naturalista, tanto quanto Guilherme não era um voluntarista. Não pretendo me delongar na demonstração disso. O filósofo Josef Pieper, em seu interessantíssimo artigo Luz inabarcável: o elemento negativo na filosofia de Tomás de Aquino, escreveu algo importante sobre o pensamento do dominicano. A ênfase do artigo é mais epistemológica que ontológica, mas ao mesmo tempo demonstra a forte conexão entre as duas coisas no pensamento de Aquino (os destaques são do autor):

"[...] há um pensamento fundamental, a partir do qual se determinam praticamente todos os elementos estruturadores de sua visão-de-mundo: o conceito de Criação. Ou, mais precisamente, o conceito de que não há nada que não seja creatura, a não ser o próprio Creator. E: que a 'criaturalidade' determina toda a estrutura interna da creatura. [...] o conceito de Criação determina e perpassa a estrutura interna de praticamente todos os conceitos fundamentais da doutrina filosófica do ser em Tomás de Aquino. [...] Tomás concordaria, em termos, quanto àquela objeção comum aos tempos modernos, continuamente reafirmada de Bacon a Kant: não se pode chamar de verdadeira a realidade, mas, no sentido rigoroso e estrito, apenas o pensado. Retrucaria ele que, sim, é plenamente oportuno considerar que somente o pensado pode chamar-se, em sentido estrito, 'verdadeiro'; mas: as coisas reais são, de fato, algo pensado! O serem pensadas é muito essencial às coisas, prosseguiria Tomás; elas são reais por serem [...] criadoramente pensadas [...]: isto deve ser entendido de modo extremamente literal, e não, em algum sentido meramente 'figurado'. [...] Ao que parece, Tomás nem ao menos conseguiu dissociar estas duas ideias: a de que as coisas possuem um 'quê', uma qüididade, um determinado conteúdo essencial e a de que esta qüididade das coisas é fruto de um pensamento projetador, pensante e criador. [...] O que há de comum entre Sartre e Tomás é [...] o pressuposto de que não se possa falar em essência das coisas, a não ser que esta seja expressamente entendida enquanto creatura. Mas, precisamente ao caráter 'ser-pensado' das coisas - que se deve ao Creator - é que Tomás se refere, quando fala da verdade, como inerente a toda realidade."

Em um pensamento dominado por tais pressupostos, não vejo de que maneira se poderia falar em uma autonomia da ética, a qual demanda princípios morais que estariam acima de Deus e não seriam, portanto, nem Creator nem creatura. Nem vejo como se poderia falar em "propriedades morais de pessoas e situações" e em "qualidades morais [que] não pressupõem um Deus" como se essas propriedades e qualidades não existissem tão somente em virtude de serem pensadas por Deus; ou que o Criador, sendo o fundamento metafísico de tudo, inclusive das leis que regem a realidade criada, não o seria também da lei moral. A leitura que Brink fez de Tomás é, pois, ainda mais equivocada que seu entendimento de Ockham.

Um comentário:

Yago Martins disse...

Dá-lhe! Sem mais.

Continue =D