Na postagem anterior dei início a alguns comentários e esclarecimentos em torno de minha leitura do livro A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna, de R. K. McGregor Wright, e dos comentários do Dr. Alan Myatt à primeira parte de minha série Sutilezas causais, em que fiz comentários sobre um dos capítulos desse livro. Prometi que nesta continuação eu faria uma breve comparação entre os posicionamentos de Cornelius Van Til e os de McGregor Wright com relação ao tema do determinismo, e é o que passo a fazer. Um dos motivos pelos quais citei Van Til duas vezes nos instantes finais da primeira parte é a afirmação do Dr. Myatt de que Wright era um vantiliano. Na época isso não fez nenhuma diferença para mim, pois eu nunca tinha lido Van Til. Mas desde então li quatro de seus livros, além de outros sobre ele (de discípulos e de antagonistas), e por isso o assunto agora tem, para mim, alguma importância.
As menções que fiz a Van Til na postagem anterior sugerem que tenho minhas dúvidas sobre até que ponto Wright se manteve fiel às intenções do holandês. Eu já obtivera de minha primeira leitura indícios que pareciam apontar na mesma direção: apesar de a admiração de Wright por Van Til ficar explicitamente clara em vários pontos do livro, parece-me que, ao menos no que diz respeito aos temas fundamentais da obra, a dívida do autor para com Gordon Clark é bem maior. Embora eu não tenha contado, é provável que as referências a Clark sejam mais numerosas, e é sempre a ele, e não a Van Til, que Wright recorre para defender o determinismo e a perfeita harmonia lógica entre a soberania divina e a responsabilidade humana. Além disso, na época da primeira leitura eu já tinha ciência das profundas divergências entre Clark e Van Til e da popularidade do livro nos círculos clarkianos brasileiros (a começar pelo irmão que me presenteou com o livro), de modo que me pareceu que Wright era basicamente um clarkiano, embora sem nenhuma birra com Van Til. Contribuiu para essa impressão a minha já mencionada falta de contato com o pensamento de Van Til na época, em contraste com minha relativa familiaridade com a obra de Clark.
Essas minhas impressões se modificaram um pouco no decorrer da segunda leitura. Agora vejo com clareza a influência de Van Til em diversos pontos da obra. Não obstante, continuo achando que, ao menos no que diz respeito à defesa do determinismo e à negação do mistério, e em especial quanto à relação entre a soberania divina e a responsabilidade humana, Wright se afina muito mais com Clark que com Van Til. Na postagem anterior, embora não tenha me referido a Clark, apresentei fatos que, creio eu, permitirão que qualquer pessoa familiarizada com a obra deste reconheça a afinidade entre ele e o autor de A soberania banida. Nesta segunda (e última) postagem, pretendo demonstrar que Wright se afastou de Van Til também em sua visão sobre o determinismo. Ao comentar as influências que recebeu, na página 40, Wright atribui a Van Til sua "crítica da pressuposição da autonomia metafísica" e a Clark a "refutação da teoria do livre-arbitrio". Quem conhece a obra de Clark sabe que essa refutação segue uma linha determinista. O que resta saber é se a crítica vantiliana da autonomia metafísica faz o mesmo. Penso que não e, para defender isso, apresentarei e discutirei brevemente duas declarações de Van Til que julgo relevantes para elucidar isso. A primeira foi retirada do livro Jerusalem and Athens, página 16, em um momento no qual Van Til acusa Stuart Hackett de não compreender o calvinismo:
"A acusação básica de Hackett, de que o calvinismo é determinista e irracional, simplesmente não é verdadeira. Primeiro, quanto à acusação de que ele é determinista e que os homens são meros 'bonecos', basta ler o próprio Calvino para se convencer de que tal entendimento do calvinismo é falso. A noção calvinista da soberania divina não tem nada a ver com a noção do filósofo quanto a um determinismo físico, causal. Eu desenvolvi de modo extenso em outros lugares a visão pactual e exaustivamente personalista da providência que é uma parte muito clara do pensamento de Calvino."
É claro que o entendimento de Wright não coincide com o de Hackett quanto ao que seria um determinismo calvinista, como se vê no fato de que o primeiro busca dissociar o assim chamado "determinismo bíblico" dos bonecos e marionetes onipresentes na retórica anticalvinista. Mas essa diferença não anula a discrepância real entre Wright e Van Til. Para este, como se vê nas palavras acima, negar que sejamos bonecos é sinônimo de negar o determinismo, que se contrapõe a uma "visão pactual e exaustivamente personalista da providência". Ao contrário de Van Til, Wright deseja manter a visão pactual e personalista da providência e negar que sejamos bonecos sem deixar de aderir ao determinismo.
Além disso, Van Til é bastante claro ao qualificar o que entende por determinismo com as palavras "físico, causal". Uma vez mais, Wright pretende dissociar as duas coisas, argumentando que o "determinismo bíblico" transcende o domínio da matéria, sendo, portanto, causal sem ser meramente físico. Wright faz isso, por exemplo, na página 103: "Há diferentes tipos de necessidade, e a causação física é apenas uma delas". Não há essa distinção no pensamento de Van Til. O determinismo de Wright é o mesmo do filósofo, preso no falso dilema entre a "causalidade irrestrita" e o acaso. Desenvolvi um pouco essa ideia na direção de uma apologética contra o ateísmo na minha série Personalidade absoluta (partes um, dois e três).
A segunda citação de Van Til foi extraída do livro The protestant doctrine of Scripture (disponível aqui). Esqueçamos, por enquanto, a crítica a Berkouwer e Barth, pois é suficiente notar que Van Til discorda deles, e concentremo-nos no que o trecho abaixo nos ensina sobre a visão vantiliana do determinismo:
"Berkouwer fala de uma certa imperiosidade que marca a ideia de causalidade. Isso é verdade no caso da visão não-cristã da causa. Na verdade, nessa visão não-cristã a causa é o que é por causa do caráter supostamente legislativo da lógica humana. A realidade deve ser o que o homem - e seu deus -, pensando logicamente, diz que ela deve ser. Spinoza deu a melhor expressão a essa ideia quando disse que a ordem e a conexão entre as ideias são as mesmas que a ordem e a conexão entre as coisas. Aquele que pensa nesses termos pensa deterministicamente. E o indeterminismo não é remédio para o determinismo. O indeterminismo é apenas a admissão do fracasso da interpretação que segue as linhas do determinismo. É Barth quem ainda está preso no falso dilema entre determinismo e indeterminismo. O único modo de fugir dele é estabelecer a posição que Berkouwer advogou em seus primeiros dias, a posição que começa com o pressuposto da autoridade, unidade e clareza da Escritura como a Palavra de Deus."
Por aí se vê que Van Til não se considerava determinista nem indeterminista, e via as duas vertentes como efeitos da crença na autonomia da razão humana. A passagem adverte muito claramente contra o racionalismo que sempre está por trás da visão determinista, e que consiste, em termos dooyeweerdianos, na absolutização do aspecto analítico. Isso leva, nas palavras de Van Til, a uma "visão não-cristã" da causalidade, que passa a ser vista como um nexo causal ininterrupto entre eventos passados, presentes e futuros, da mesna forma pela qual, em uma dedução silogística perfeita, uma conclusão se segue das premissas através de uma série de passos lógicos inevitáveis.
Não duvido, é claro, que Van Til possa ter utilizado o termo "determinismo" alguma vez para se referir à sua própria posição. Na verdade, lembro de ter lido em algum lugar (não em fontes primárias) que ele já usou a expressão "determinismo pessoal", o que talvez explique a contraposição, feita pelo Dr. Myatt, entre "o acaso, de um lado, e o determinismo impessoal, do outro lado" no pensamento apóstata. Mas isso, mesmo que seja verdade, não anula os argumentos que levantei aqui em favor de uma diferença radical entre a visão vantiliana da providência divina e o determinismo apóstata - diferença muito mais radical que a existente entre este último e o determinismo de Wright. Afinal, todos sabemos - e o próprio Van Til, de certo modo, o admitiu na réplica a Dooyeweerd em Jerusalem and Athens - que seu modo de usar certas terminologias era por vezes infeliz e levava a interpretações equivocadas. Pessoas tão diferentes quanto Doyeweerd, Sproul e Frame perceberam e reclamaram disso.
Diante de todas essas constatações, só posso concluir que o Dr. Myatt transmitiu uma impressão equivocada (ou pelo menos exagerada) ao dar a entender uma profunda fidelidade de Wright ao pensamento de Van Til.
As menções que fiz a Van Til na postagem anterior sugerem que tenho minhas dúvidas sobre até que ponto Wright se manteve fiel às intenções do holandês. Eu já obtivera de minha primeira leitura indícios que pareciam apontar na mesma direção: apesar de a admiração de Wright por Van Til ficar explicitamente clara em vários pontos do livro, parece-me que, ao menos no que diz respeito aos temas fundamentais da obra, a dívida do autor para com Gordon Clark é bem maior. Embora eu não tenha contado, é provável que as referências a Clark sejam mais numerosas, e é sempre a ele, e não a Van Til, que Wright recorre para defender o determinismo e a perfeita harmonia lógica entre a soberania divina e a responsabilidade humana. Além disso, na época da primeira leitura eu já tinha ciência das profundas divergências entre Clark e Van Til e da popularidade do livro nos círculos clarkianos brasileiros (a começar pelo irmão que me presenteou com o livro), de modo que me pareceu que Wright era basicamente um clarkiano, embora sem nenhuma birra com Van Til. Contribuiu para essa impressão a minha já mencionada falta de contato com o pensamento de Van Til na época, em contraste com minha relativa familiaridade com a obra de Clark.
Essas minhas impressões se modificaram um pouco no decorrer da segunda leitura. Agora vejo com clareza a influência de Van Til em diversos pontos da obra. Não obstante, continuo achando que, ao menos no que diz respeito à defesa do determinismo e à negação do mistério, e em especial quanto à relação entre a soberania divina e a responsabilidade humana, Wright se afina muito mais com Clark que com Van Til. Na postagem anterior, embora não tenha me referido a Clark, apresentei fatos que, creio eu, permitirão que qualquer pessoa familiarizada com a obra deste reconheça a afinidade entre ele e o autor de A soberania banida. Nesta segunda (e última) postagem, pretendo demonstrar que Wright se afastou de Van Til também em sua visão sobre o determinismo. Ao comentar as influências que recebeu, na página 40, Wright atribui a Van Til sua "crítica da pressuposição da autonomia metafísica" e a Clark a "refutação da teoria do livre-arbitrio". Quem conhece a obra de Clark sabe que essa refutação segue uma linha determinista. O que resta saber é se a crítica vantiliana da autonomia metafísica faz o mesmo. Penso que não e, para defender isso, apresentarei e discutirei brevemente duas declarações de Van Til que julgo relevantes para elucidar isso. A primeira foi retirada do livro Jerusalem and Athens, página 16, em um momento no qual Van Til acusa Stuart Hackett de não compreender o calvinismo:
"A acusação básica de Hackett, de que o calvinismo é determinista e irracional, simplesmente não é verdadeira. Primeiro, quanto à acusação de que ele é determinista e que os homens são meros 'bonecos', basta ler o próprio Calvino para se convencer de que tal entendimento do calvinismo é falso. A noção calvinista da soberania divina não tem nada a ver com a noção do filósofo quanto a um determinismo físico, causal. Eu desenvolvi de modo extenso em outros lugares a visão pactual e exaustivamente personalista da providência que é uma parte muito clara do pensamento de Calvino."
É claro que o entendimento de Wright não coincide com o de Hackett quanto ao que seria um determinismo calvinista, como se vê no fato de que o primeiro busca dissociar o assim chamado "determinismo bíblico" dos bonecos e marionetes onipresentes na retórica anticalvinista. Mas essa diferença não anula a discrepância real entre Wright e Van Til. Para este, como se vê nas palavras acima, negar que sejamos bonecos é sinônimo de negar o determinismo, que se contrapõe a uma "visão pactual e exaustivamente personalista da providência". Ao contrário de Van Til, Wright deseja manter a visão pactual e personalista da providência e negar que sejamos bonecos sem deixar de aderir ao determinismo.
Além disso, Van Til é bastante claro ao qualificar o que entende por determinismo com as palavras "físico, causal". Uma vez mais, Wright pretende dissociar as duas coisas, argumentando que o "determinismo bíblico" transcende o domínio da matéria, sendo, portanto, causal sem ser meramente físico. Wright faz isso, por exemplo, na página 103: "Há diferentes tipos de necessidade, e a causação física é apenas uma delas". Não há essa distinção no pensamento de Van Til. O determinismo de Wright é o mesmo do filósofo, preso no falso dilema entre a "causalidade irrestrita" e o acaso. Desenvolvi um pouco essa ideia na direção de uma apologética contra o ateísmo na minha série Personalidade absoluta (partes um, dois e três).
A segunda citação de Van Til foi extraída do livro The protestant doctrine of Scripture (disponível aqui). Esqueçamos, por enquanto, a crítica a Berkouwer e Barth, pois é suficiente notar que Van Til discorda deles, e concentremo-nos no que o trecho abaixo nos ensina sobre a visão vantiliana do determinismo:
"Berkouwer fala de uma certa imperiosidade que marca a ideia de causalidade. Isso é verdade no caso da visão não-cristã da causa. Na verdade, nessa visão não-cristã a causa é o que é por causa do caráter supostamente legislativo da lógica humana. A realidade deve ser o que o homem - e seu deus -, pensando logicamente, diz que ela deve ser. Spinoza deu a melhor expressão a essa ideia quando disse que a ordem e a conexão entre as ideias são as mesmas que a ordem e a conexão entre as coisas. Aquele que pensa nesses termos pensa deterministicamente. E o indeterminismo não é remédio para o determinismo. O indeterminismo é apenas a admissão do fracasso da interpretação que segue as linhas do determinismo. É Barth quem ainda está preso no falso dilema entre determinismo e indeterminismo. O único modo de fugir dele é estabelecer a posição que Berkouwer advogou em seus primeiros dias, a posição que começa com o pressuposto da autoridade, unidade e clareza da Escritura como a Palavra de Deus."
Por aí se vê que Van Til não se considerava determinista nem indeterminista, e via as duas vertentes como efeitos da crença na autonomia da razão humana. A passagem adverte muito claramente contra o racionalismo que sempre está por trás da visão determinista, e que consiste, em termos dooyeweerdianos, na absolutização do aspecto analítico. Isso leva, nas palavras de Van Til, a uma "visão não-cristã" da causalidade, que passa a ser vista como um nexo causal ininterrupto entre eventos passados, presentes e futuros, da mesna forma pela qual, em uma dedução silogística perfeita, uma conclusão se segue das premissas através de uma série de passos lógicos inevitáveis.
Não duvido, é claro, que Van Til possa ter utilizado o termo "determinismo" alguma vez para se referir à sua própria posição. Na verdade, lembro de ter lido em algum lugar (não em fontes primárias) que ele já usou a expressão "determinismo pessoal", o que talvez explique a contraposição, feita pelo Dr. Myatt, entre "o acaso, de um lado, e o determinismo impessoal, do outro lado" no pensamento apóstata. Mas isso, mesmo que seja verdade, não anula os argumentos que levantei aqui em favor de uma diferença radical entre a visão vantiliana da providência divina e o determinismo apóstata - diferença muito mais radical que a existente entre este último e o determinismo de Wright. Afinal, todos sabemos - e o próprio Van Til, de certo modo, o admitiu na réplica a Dooyeweerd em Jerusalem and Athens - que seu modo de usar certas terminologias era por vezes infeliz e levava a interpretações equivocadas. Pessoas tão diferentes quanto Doyeweerd, Sproul e Frame perceberam e reclamaram disso.
Diante de todas essas constatações, só posso concluir que o Dr. Myatt transmitiu uma impressão equivocada (ou pelo menos exagerada) ao dar a entender uma profunda fidelidade de Wright ao pensamento de Van Til.
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