23 de outubro de 2016

Profecia e divindade - parte 6

2.1. Hebreus 1

Uma das passagens bíblicas mais esclarecedoras sobre o tema da divindade de Jesus está nas palavras iniciais da carta aos Hebreus. Essa carta não tem preâmbulos: entra direto no seu tema principal, que é a superioridade de Cristo sobre todas as revelações anteriores. Sua primeira sentença é assim: "Havendo Deus outrora falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nesses últimos dias ele nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro sobre todas as coisas e pelo qual também fez o universo". Note-se que tudo se estabelece em termos de um contraste absoluto entre o antes e o agora. A única coisa em comum é que o Deus que se revela (fala) é o mesmo. Mas ele se revelara "muitas vezes e de muitas maneiras", e agora falou de uma única maneira. Antes havia sido "aos pais", isto é, aos antepassados dos judeus que estavam lendo a carta, e agora é "a nós". E o mais importante: antes Deus havia falado através dos profetas, e agora ele falou pelo Filho. A intenção de contrastar o Filho com os meros profetas é evidente. É claro que a oposição não é absoluta, pois Jesus também é chamado de profeta várias vezes no Novo Testamento. O ponto a ser destacado é que ele não é menos que um profeta, mas certamente é muito mais. E, na verdade, basicamente todo o restante do capítulo 1 de Hebreus é dedicado a essa superioridade de Jesus sobre os profetas. O argumento começa já nessa primeira frase, quando, depois de se referir ao Filho, o autor anônimo diz que esse Filho foi constituído por Deus como "herdeiro sobre todas as coisas" e acrescenta a afirmação impressionante de que Deus criou o universo através desse mesmo Filho. Não são coisas que a Bíblia atribua a algum mero profeta.

Mas isso não é tudo. O texto continua falando de Jesus nos seguintes termos: "Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata de seu ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de haver feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que o deles". Eis, portanto, uma sequência rápida e impressionante de afirmações sobre a identidade de Jesus. Destaco quatro elementos. Primeiro, Jesus é o resplendor da glória de Deus; essa glória se evidencia nele de modo inigualável. Segundo, Jesus é a expressão exata do ser de Deus; quando Jesus disse "quem me vê, vê o Pai", ele não estava afirmando ser o Pai, mas estava afirmando uma semelhança que não encontra paralelo na capacidade de qualquer ser humano comum. Terceiro, ele sustenta todas as coisas "por sua palavra poderosa", como diz uma outra versão (de modo mais claro, mas menos poético). Para os judeus (e cristãos), Deus não é só o Criador de todas as coisas, mas também seu sustentador, ou seja, ele faz com que cada coisa criada continue existindo momento a momento; o autor de Hebreus atribui a Jesus esse poder de sustentar toda a criação. E quarto, ao cumprir sua missão no mundo, Jesus alcançou dignidade maior que a dos anjos. Adiante discutirei outra passagem bíblica que explica isso melhor. O autor de Hebreus gasta o restante do capítulo argumentando, com base em passagens do Antigo Testamento, que Jesus é superior a todos os anjos.

Note-se que todas essas declarações são extremamente ousadas, ou mesmo blasfemas, se o autor da carta estiver falando de alguém que é menos que Deus. Note-se, além disso, que todas essas afirmações bombásticas são feitas em um contexto que trata justamente da história da revelação. É porque Jesus é todas essas coisas que aquilo que ele revela sobre Deus é superior ao que revelaram todos os profetas que o precederam, os quais, afinal de contas, eram apenas humanos. Essa lógica e esses dados bíblicos são exatamente o que o preletor muçulmano precisa ignorar (não sei se conscientemente ou não) para afirmar a visão corânica de que Jesus é um profeta como tantos outros. A superioridade da revelação de Jesus sobre qualquer outra está inquebrantavelmente vinculada à superioridade do próprio Jesus sobre qualquer outro ser humano. Diante do modo como a Bíblia apresenta a perfeição e a natureza de Cristo, a ideia de que uma revelação superior pudesse aparecer mais tarde na história, através de Maomé ou de qualquer outra pessoa, simplesmente não faz sentido. As opções consistentes são apenas duas: rejeitar a pretensão de profetas como esse ou rejeitar o que a Bíblia afirma sobre Jesus.

2.2. João 1

O primeiro capítulo do evangelho segundo João é também muito incisivo quanto à identidade de Jesus. Em alguns pontos, apesar da linguagem peculiar, a mensagem transmitida é a mesma de Hebreus, mas há também alguns acréscimos interessantes e dignos de nota. O evangelho de João começa assim: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele" (1.1-3). O fato de o evangelho ter início com as palavras "no princípio" é um clara alusão à criação do mundo conforme o relato do Gênesis, que começa com "No princípio criou Deus os céus e a terra". O apóstolo João está dizendo que Jesus estava presente na criação do mundo junto com o Pai ("estava com Deus"). Além disso, o texto afirma explicitamente que o próprio Jesus "era Deus". Mesmo que essa afirmação não estivesse claramente presente, o contexto já seria suficiente para sugerir a mesma coisa. Dizer que alguém estava presente na criação do mundo e participou do ato criador era, para um judeu, uma indicação clara de divindade, pois a doutrina judaica não atribui esse papel a mais ninguém. Isaías 44.24 diz claramente: "Eu sou o Senhor, que fiz todas as coisas, que sozinho estendi os céus, que espalhei a terra por mim mesmo". Portanto, os versículos iniciais de João afirmam que Jesus é tão Deus quanto o Pai e, ao mesmo tempo, que ele e o Pai são pessoas distintas.

Ainda no capítulo 1, João fala também do papel especial de Jesus na revelação. Isso é feito em dois momentos: os versículos 14 e 17-18. O primeiro diz: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai". E os versículos 17 e 18 dizem: "Porque a lei veio por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por intermédio de Jesus Cristo. Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou". Portanto, Jesus é quem revela a glória do Pai. Jesus é superior a Moisés - que, vale lembrar, é o maior profeta do Antigo Testamento. Os leitores judeus de João certamente se lembrariam de um episódio narrado em Êxodo 33.18-20, no qual Moisés pede para ver a glória de Deus. Mas Deus lhe concede apenas uma visão parcial, acrescentando que "Você não poderá ver a minha face, porque ninguém poderá ver-me e continuar vivo". Parece que João tinha essa história em mente, pois usa a ideia de ver Deus, ver a glória de Deus, e a comparação com Moisés está claramente em vista no versículo anterior: Jesus conhece a glória do Pai de um modo que ninguém mais conhece, e ele a revela de um modo que ninguém mais revela.

Essa posição de singularidade que Cristo ocupa é afirmada nesses versículos ainda de uma outra maneira: nas duas referências a Jesus como "unigênito", palavra que indica que Jesus é filho único. Essa ideia não costuma ser muito enfatizada, e a religiosidade popular, com chavões como "todo mundo é filho de Deus", tende a atribuir a essa expressão uma conotação mais vaga e diluída, que não corresponde ao uso bíblico - nem, de modo geral, ao uso que se fazia na Antiguidade. Os versículos 12 e 13 expõem isso com muita clareza ao dizer sobre Cristo que, "a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus". Note-se que ele não aplica a expressão "filhos de Deus" indistintamente, e sim apenas àqueles que "receberam" Jesus; e diz ainda que esses, tendo-o recebido, "são feitos", ou seja, se tornam filhos de Deus, coisa que não eram antes. Essa ideia é muito importante. Paulo a desenvolve em termos levemente diferentes, falando de uma "adoção", pela qual Deus passa a nos tratar como filhos legítimos, embora não o sejamos por natureza. Isso está em Romanos 8.13-17:

"Pois se vocês viverem de acordo com a carne, morrerão; mas, se pelo Espírito fizerem morrer os atos do corpo, viverão, porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: 'Aba, Pai'. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Se somos filhos, então somos herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, se de fato participamos dos seus sofrimentos, para que também participemos da sua glória."

Essa ideia é repetida adiante, nos versículos 22 e 23: "Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo." E, novamente, nos versículos 28 e 29: "Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos." Toda essa linguagem, embora honrosa para os filhos adotivos, deixa claro que existe uma diferença fundamental entre Jesus, o unigênito e filho de Deus por direito, e nós, adotados de forma graciosa e misericordiosa, que somos tratados por Deus com uma honra que não merecemos por nossa própria natureza.

3 comentários:

Mulher na Polícia disse...

Fala Andrezinho!

Você tá estudando pra caramba, hein?

Issaê!

: *

André disse...

Ei, você que enviou o comentário que não publiquei.

Não sei como falar com você. Não achei o endereço do seu blog no seu perfil. Me mande, que eu comento lá.

Ou, se preferir, me mande um e-mail: alvenancio@gmail.com.

Aguardo, e agradeço. Abraços!

Unknown disse...

Ótimo!!!

Demonstra muito estudo mesmo e conhecimento sobre o que fala!