3 de julho de 2007

A mais grandiosa das aventuras

Poucos dias depois de eu ter publicado minha breve investida contra o determinismo, recebi um e-mail de um amigo pedindo-me que lhe explicasse exatamente um daqueles pontos que, naquele texto, eu não quis discutir. Em vista de eu ter me recusado veementemente a abrir mão da minha experiência concreta em favor de alguma outra coisa, ele quer saber como se pode conciliar a liberdade humana com a onisciência e onipotência de Deus, isto é, como eu espero afirmar a absoluta soberania divina sem incorrer naquilo que, muito apropriadamente, ele chama de "determinismo teológico". Visto que eu pretendia falar sobre esse assunto neste blog mais cedo ou mais tarde, e visto também que eu não ia ter tempo nos próximos dias para redigir dois textos (uma resposta ao meu amigo e um post neste blog), decidi escrever hoje sobre esse tema aqui. Mas já que vou publicar esse texto, peço licença para fazer um trabalho um pouco mais completo, discorrendo também sobre os pontos pertinentes que meu amigo já percebeu por si mesmo, e não apenas aquele no qual ele empacou.

Antes de entrar no assunto propriamente dito, convém esclarecer em poucas palavras qual é exatamente o conceito sobre Deus que o cristianismo advoga como correto. Pode parecer surpreendente, mas existe entre os inimigos da fé cristã uma ignorância tão grande acerca dessa questão tão básica que isso acaba sendo necessário. Richard Dawkins, por exemplo, que é um dos ateus militantes mais famosos do mundo, e que boa parte dos meus conhecidos ateus considera um sujeito intelectualmente muito respeitável, acaba de publicar um livro no qual mostra que nunca ouviu falar naquilo que a teologia cristã chama "eternidade", e que Boécio definiu como "a posse simultânea de todos os estados do ser". Um milênio e meio não foi tempo suficiente para que essa idéia simples, na qual se baseia toda a reflexão filosófica posterior dentro do cristianismo sobre a natureza de Deus, chegasse aos ouvidos do famoso biólogo de Oxford. Com um conceito tão pueril sobre a divindade, pode-se facilmente perceber que a posição teísta não teria como fugir ao determinismo. Deus seria como um homem que pondera e decide tomar determinada atitude daqui a algum tempo. Mas ele é um homem dotado de imutabilidade, de forma que ele não abandona o plano antes que chegue o momento de executá-lo, e onipotência, de modo que causas externas não impedem sua concretização. O resultado disso é que, assim como no determinismo laplaciano clássico, o estado do universo em qualquer instante dado é função de seus estados prévios; no caso, função do que Deus decidiu, em algum momento do passado, que viria a acontecer.

Entretanto, como eu já disse, isso não corresponde ao que o cristianismo tem ensinado acerca de Deus ao longo de todos esses séculos. Pois nessa doutrina Deus não é alguém que esteve andando por aí durante muito tempo e de repente resolveu criar o mundo, e sim alguém que criou tudo o que existe, inclusive o tempo e o espaço, e por isso mesmo não está de modo algum limitado por essas entidades. A onipresença de Deus não significa que ele ocupa um volume infinito, e sim que para ele não existe "ali" ou "lá", mas apenas "aqui". Da mesma forma, a eternidade de Deus não significa que ele existe há um tempo infinito e continuará existindo perpetuamente, e sim que para ele não existe passado e futuro, pois para ele tudo é presente. Diante disso, o mínimo que pode ser dito com segurança é que a onisciência divina não é logicamente incompatível com a liberdade humana, visto que nada nesse quadro exige uma determinação unívoca do estado do universo em função de estados prévios. E de fato não é através de cálculos matemáticos determinísticos que Deus conhece o futuro. Deus conhece o futuro justamente porque para ele não é futuro, porque ele o vê se desenrolando tanto quanto vê aquilo que para nós são o passado e o presente; para Deus tudo está presente, pois ele presencia igualmente todos os eventos.

Naturalmente, ninguém dirá que, ao executarmos um ato qualquer, nossa liberdade é violada por Deus ou por qualquer outra pessoa pelo simples fato de que o ato é presenciado por essa pessoa. Uma coisa não tem relação lógica alguma com a outra. Nenhuma objeção ao livre arbítrio humano com base na onisciência divina (ou vice-versa) pode ser admitida com base em considerações sobre o tempo. Pois em vista da eternidade de Deus, conforme explicada acima, utilizar expressões como "o futuro está decidido" ou "Deus sabe o que irá acontecer" é incorrer no mais infantil antropomorfismo. A palavra "já" é a causa de toda a confusão, pois ela remete a algum momento do passado, ou então nada significa. E a verdade é que não há nenhum momento do passado ao qual possa ser atribuída a decisão divina de que a situação presente (ou futura) deveria ser tal como é (ou será). Utilizar descuidadamente palavras que denotam tempo em referência a eventos ocorridos fora do tempo só pode mesmo resultar em confusão. O mais importante, porém, é constatar que, se palavras como "já" ou "previamente" forem evitadas no contexto dessa discussão, torna-se impossível a simples formulação do problema de uma maneira que faça sentido.

Mas se eu parar por aqui, como bem percebeu o meu amigo, poderíamos ficar com a impressão de que Deus é um sujeito que apenas observa passivamente tudo o que se passa, como se não houvesse da parte dele qualquer tentativa de manter o controle da situação e dirigir os rumos da história para onde lhe apraz. Mas o Deus cristão é justamente assim: ele exerce ativamente seu poder na sua criação de modo que ela, no todo e em cada uma de suas partes, atinja os fins estabelecidos por sua soberana decisão, e nenhum pardal caia se não for essa a sua vontade. Ora, mas se a situação é essa, então como ainda se pode falar em liberdade humana? Pois se é impossível pegar Deus de surpresa, se tudo o que fazemos ou deixamos de fazer encaixa-se com perfeição em seus inescrutáveis desígnios, em que sentido se pode dizer que nossos atos são verdadeiramente livres? Parece que, mesmo deixando de lado a questão cronológica, que é mera infantilidade, resta ainda um problema lógico que merece consideração mais atenta.

O pressuposto implícito nessa objeção é que um ato só pode ser verdadeiramente livre se não estiver encaixado nos planos de ninguém, a não ser nos do próprio autor da ação. Mas por que deveríamos aceitar essa maneira de caracterizar o conceito de liberdade? Desde que um ser seja capaz de optar verdadeiramente entre duas ou mais condutas, isto é, sem qualquer coerção externa insuperável, a questão de saber se o ato efetivamente realizado está ou não de acordo com os desígnios de outra pessoa é irrelevante do ponto de vista do próprio ato, pois em qualquer caso ele atende os requisitos que o caracterizam como livre. O ser superior em questão pode manter o controle da situação atropelando as vontades livres dos agentes envolvidos ou integrando-as harmonicamente nos acontecimentos. Não posso ver qualquer contradição lógica na segunda alternativa. Isso talvez pareça a alguns como apenas uma abstração filosófica, mas eu creio poder ilustrá-la com um exemplo bastante concreto e palpável: o RPG ("Roleplaying game", ou jogo de representação de papéis). Antes de mudar de parágrafo, farei um breve resumo dos pontos essenciais desse jogo para quem porventura não o conheça. Os jogadores criam personagens e os caracterizam da melhor maneira possível, conforme bem lhes parecer, de acordo com certas regras (cujo objetivo principal é apenas evitar que os personagens sejam super-homens). Depois vem o jogo em si, no qual cada jogador deve, mantendo-se fiel ao personagem que criou, tomar decisões frente às situações descritas pelo narrador. Este é apenas um jogador cuja função não é interpretar um personagem, e sim criar o ambiente e conduzir a história em que os personagens existem e agem.

Evidentemente, um narrador que conheça muito bem a índole dos jogadores e dos personagens pode planejar de antemão os rumos de uma aventura e conduzi-la em direção a esse fim sem grandes dificuldades ou imprevistos. Não que isso na prática seja fácil, mas é, em princípio, possível. O ponto a ser ressaltado, porém, é que em nenhum momento isso implicará em violação da liberdade dos jogadores. Um narrador pode até tomar uma atitude tão drástica quanto obrigar um profeta a ir até Nínive no ventre de um peixe, mas se o jogador disser "agora meu personagem vai dar um soco nesse garçom", ele não poderá responder "não, ele não está com vontade de fazer isso". Essa é a diferença entre interferir efetivamente na liberdade individual e apenas restringir severamente o campo de possibilidades de ação num determinado contexto. Essa restrição em maior ou menor grau é, como expliquei no outro post, um aspecto fundamental e incontornável da condição humana neste mundo. Uma vez compreendido esse ponto, é fácil perceber que se um narrador de RPG é onisciente e onipotente, e conhece perfeitamente bem seus jogadores (muito melhor, portanto, que eles próprios), não vejo que dificuldade ele pode ter em criar situações e conduzi-las com perfeição rumo a um resultado desejado sem suprimir a liberdade de ninguém. Não é que esta não exista, e sim que ela se encaixa nos desígnios do narrador e faz parte deles. O RPG tem justamente o objetivo de simular a vastidão das possibilidades de ação que possuímos em nossa vida real, e é por isso mesmo que, guardadas as devidas proporções, a vida é livre como uma aventura de RPG. É, aliás, a mais grandiosa de todas as aventuras, e isso justamente pelos méritos de seu Narrador. O jogo tenta imitá-la, mas não pode chegar aos pés dela.

Não devo encerrar este texto sem prestar um breve esclarecimento. Temo que alguém possa tomar essas minhas palavras como um posicionamento sobre a doutrina da predestinação, que já gerou incontáveis debates tanto dentro do protestantismo quanto no catolicismo. A verdade, porém, é que este post não chega nem perto de entrar nessa complicada questão. Pelo contrário, a defesa da liberdade humana contra toda forma de determinismo é uma luta empreendida por todo o cristianismo, monergista ou sinergista, católico ou protestante, calvinista ou arminiano, correto ou equivocado, pois essa liberdade é o fundamento lógico da responsabilidade moral, e portanto da própria possibilidade do pecado. A divergência real e essencial entre as concepções monergista e sinergista não reside nesse ponto, e sim em questões sobre a extensão e profundidade da depravação humana e sobre os papéis desempenhados respectivamente por Deus e pelo indivíduo na salvação deste último. Mas todas as respostas, boas ou ruins, apresentadas dentro da teologia cristã pressupõem o livre arbítrio humano, ao menos no sentido em que essa expressão foi empregada por mim nesta análise.

3 comentários:

Roberto Vargas Jr. disse...

Meu caro André,

Consegui separar um tempo para ler seu artigo. É um pouco difícil comentar via blog. Uma conversa pessoal seria bem mais interessante! Mas vou tentar dizer algumas coisas...

Sua consideração sobre eternidade e tempo é fundamental. Muitos erros seguem de um mau entendimento e pela confusão sobre isso. E, se por um lado, as idéias devem estar em mente para se evitar confundi-las, por outro não há mesmo como falar exceto em termos de tempo.

Sua argumentação, no entanto, pareceu-me dúbia. Isto é, ao mesmo tempo em que parecemos concordar também parecemos discordar. Por exemplo, ao definir liberdade como "optar verdadeiramente entre duas ou mais condutas, isto é, sem qualquer coerção externa insuperável", parecemos concordar em que o agir dos homens é necessário (quanto ao desígnio e de acordo com sua natureza), porém sem constrangimento (voluntário). Mas, por sugerido no seu texto, também parece exigir absoluta indeterminação (ou talvez indeterminação suficiente), e nisto discordaríamos.
Também, e no mesmo sentido, ao sugerir que a Soberania faria uma integração harmônica dos acontecimentos, admitindo também um controle por Deus das vontades livres, aparentemente concordamos, pois o decreto divino exige ambas as coisas. Porém, o controle que entendo é absoluto e, embora eu precise entender melhor como você define determinismo, considero-me determinista. Pois, e parece que nisso discordamos em alguma medida, tanto a criação, homem incluso, é determinado pelos desígnios divinos quanto o homem em sua liberdade é determinado por sua natureza.

Mas o ponto nevrálgico é a relação entre responsabilidade e liberdade. Em algum grau, eu também assumo que o homem deva agir livremente para ser responsabilizado. Mas isso somente se esta liberdade significar um agir voluntário. Qualquer liberdade que sugira autonomia ou um absoluto indeterminismo é antibíblica e contraditória, não à responsabilidade propriamente, mas à soberania divina. A responsabilidade não exige autonomia. Isto, para mim, está bem claro. O que ainda tenho dúvidas é se a responsabilidade exige mesmo a liberdade, entendida como ação voluntária.
Há um exemplo bobo que me ajuda a falar sobre isso. Se eu piso o pé de alguém, mesmo que sem querer (involuntariamente, portanto), imediatamente reconheço minha responsabilidade por este ato e peço desculpas. Como eu disse, é um exemplo bobo e alguém sempre poderá questionar se isso pode ser uma analogia quanto à responsabilidade moral. Eu não vejo porque não! Mesmo assim, ainda assumo que a vontade, que não é de fato livre (ou absolutamente livre), nos torna responsáveis.

Grande abraço, no Soberano,
Roberto

Jorge Fernandes Isah disse...

André,

não me sinto em condições de dialogar com você ou o Roberto no nível de entendimento que têm, mas gostaria de fazer algumas considerações sobre o seu texto:

1)Parece-me que você defende alguma espécie de livre-arbítrio, ainda que não seja essencialmente o livre-arbítrio arminiano, em que o homem tem a liberdade da indiferença. Neste caso, estaria mais para a livre-agência, em que o homem tem liberdade de agir conforme a sua natureza (se caída, para o pecado; se regenerado, podendo escolher entre o bem e o mal), porém, essa natureza é decretada e definida por Deus.
Quando diz que o ser é livre ao "ser capaz de optar verdadeiramente entre duas ou mais condutas, isto é, sem qualquer 'coerção externa insuperável'", faz-se necessário você definir o que seja 'insuperável' para entender se está a falar de livre-arbítrio ou livre-agência.
Para mim, são apenas conceitos de 'liberdade' em graus diferentes (o autonomismo do livre-arbítrio, ou o compatibilismo da livre-agência), mas ainda assim liberdade, cujos conceitos autônomos e compatibilistas não são bíblico. Pois como você conciliará as inúmeras passagens em que Deus diz o que fará e tudo se cumprirá infalível e inapelavelmente como Ele disse que faria?
Onde está a liberdade do homem, se ele é livre apenas para fazer/cumprir a vontade divina?

2)Você usa a questão do tempo para invalidar o determinismo. Mas não vejo em que o determinismo pode ser anulado por sua explicação. Há de se entender que Deus decretou tudo o que acontecerá, seja a morte do pardal, a folha que cairá da ávore, ou o número de cabelos da cabeça. O fato de se entender o decreto divino numa perspectiva humana temporal não invalida o decreto eterno (não há decretos, mas apenas um decreto em que Deus estabeleceu todo o curso das coisas), muito menos o Seu poder em controlar todas as coisas. Porque a Sua autoridade permanece, seja no tempo ou fora dele; isso nem o tempo pode mudar.

3)Não consigo entender do ponto de vista prático a diferenciação do que você disse: "O ser superior em questão pode manter o controle da situação atropelando as vontades livres dos agentes envolvidos ou integrando-as harmonicamente nos acontecimentos. Não posso ver qualquer contradição lógica na segunda alternativa".
Ao meu ver, você está usando de um artifício, um jogo de palavras para dar "voz" à liberdade humana, quando no trecho você está a falar somente da liberdade divina de "poder" fazer uma coisa ou outra. No final, a decisão será dEle, não nossa.
continua...

Jorge Fernandes Isah disse...

...

4)Discutir a questão da liberdade humana é possível, mas afirmar que o Cristianismo em todos os seus níveis luta contra "toda a forma de determinismo... pois essa liberdade é o fundamento lógico da responsabilidade moral, e portanto da própria possibilidade do pecado" (você acaba por se tornar a voz do Cristianismo?), é excluir Deus de decretar o pecado e a queda, pois no seu entender a responsabilidade moral pressupõe a autonomia da liberdade sem a qual o homem não cairia. Desta forma, o livre-arbítrio humano é que foi o criador do pecado e da queda, mas como se o homem não estava sujeito a influências externas insuperáveis?
Resta-nos então o acaso, mas aí como se poderá falar em responsabilidade moral?
Dizer que o diabo corrompeu Adão e Eva leva-nos à situação de Lúcifer em relação ao pecado e o mal quando ainda era um querubim de luz. Quem o levou a desejar a rebeldia sendo que a rebeldia não existia? Foi ele o criador do mal? Em que bases ele criou, se o livre-arbítrio é neutro e impossível de levar o homem a uma decisão, seja boa ou má? Excluir uma influência externa para que satanás e 1/3 dos anjos caíssem é dizer que eles cairam alheios à vontade divina. Este é o problema do autonomismo, requer que todas as decisões estejam à margem de Deus. Neste contexto, Ele não é soberano, nem mesmo é o Deus bíblico revelado especialmente, e é-se possível ir contra a Sua vontade, e mesmo criar algo à Sua revelia; e estamos muito próximos do deísmo ou do dualismo.

Ao meu ver, é impossível o homem escolher sem qualquer tipo de coerção, pois o livre-arbítrio o manteria num estado de "ponto morto", de neutralidade tal que não sairia do lugar.

Em tudo isso, o mais importante é salientar que nenhum conceito de liberdade humana está presente na Escritura, no sentido de uma liberdade "livre" de Deus.

Em todas as situações a vontade humana estará sujeita à vontade divina, logo, o homem não é livre, e não possui a capacidade inata de escolha entre alternativas. Pois a Escritura enfatiza em todos os aspectos a liberdade de Deus, e somente dEle.

Abraços.

Cristo o abençoe!

PS: desculpe-me alguns erros, mas é que estou escrevendo do trabalho.