7 de setembro de 2011

Sutilezas causais - parte 3

Na presente postagem, darei continuidade ao post anterior, respondendo aos comentários que o Dr. Alan Myatt fez à primeira parte.

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Passemos agora ao argumento que levantei contra a dualidade entre "causa e acaso" defendida por Wright. Sua resposta, que apela para a autocontenção de Deus e a ausência de autocontenção no homem, já me passou pela cabeça, e é a que eu usaria para responder a mim mesmo, se fosse esse o propósito do post. Mas não é. O sr. disse sobre meu argumento: "Não vejo como isto serve para comprovar que o mesmo seja possível no caso do homem". Porém, eu não disse que meu argumento comprova alguma coisa. O que eu disse foi: "Esse fato deveria bastar ao menos para levantar a possibilidade de que o universo dos seres pessoais, entre os quais se encontra o próprio Deus, não seja regido pela mesma categoria de leis que se aplica ao universo inanimado". Em outras palavras, eu apresentei meu argumento como uma possibilidade não discutida por Wright, sem ter interesse em levar, de imediato, a linha sugerida por esse argumento até o final, o que fugiria demais ao simples propósito de criticar o autor naqueles pontos que ele não discutiu por se encontrarem fora de seu horizonte mental de possibilidades. E é por isso que eu concluí dizendo: "A incapacidade de vislumbrar essa alternativa me parece semelhante a um daqueles vícios de pensamento que aparecem de modo muito mais evidente em pensadores materialistas".

Mas, de qualquer modo, seu argumento exige resposta. Posso dar uma resposta exaustiva, e pretendo vir a escrever mais sobre isso, mas também posso dar uma resposta sucinta e suficiente, que é o que passo a fazer. Em termos lógicos, nossos argumentos se equivalem: eu afirmei a possibilidade da liberdade apontando uma semelhança entre o homem e Deus, em contraste com a natureza; o sr. negou essa possibilidade com base em uma semelhança entre o homem e a natureza, em contraste com Deus. Ora, todos sabemos que de fato existem no homem ambas as categorias de semelhanças e contrastes. Resta saber apenas em qual delas a liberdade se encaixa. Portanto, apelar a contrastes entre os modos de existência divino e humano não é, em si, objeção à possibilidade que levantei, de modo que ela continua de pé. Isso não significa, entretanto, que o sr. não tenha levantado alguma objeção ao que eu disse. Levantou esta aqui:

"No contexto do universo, negar que Deus tivesse determinado tudo que acontece levanta a questão: então quem, ou o que, o determinou? O arminiano gostaria de dizer: ou nada, ou o próprio homem. Mas o fato é: a coisa não causada, no caso de um ente finito, deve ser resultado do acaso. Qual seria a possibilidade intermediária? Deus é o único ser autocausado. O homem é, e sempre será, uma criatura."

Como está, sua afirmação é imprecisa, pois não conheço nenhum arminiano que sustente que o homem determina tudo o que acontece. Mas pude entender o que o sr. quis dizer. Porém, é justamente essa declaração do "fato" que precisava de uma demonstração. É na admissão desse "fato" como algo incontestável que reside o que descrevi como "um daqueles vícios de pensamento que aparecem de modo muito mais evidente em pensadores materialistas". O sr., na verdade, apenas repetiu o que Wright disse dezenas de vezes no livro, sem levantar um argumento melhor que o dele. Não darei uma resposta completa à sua pergunta sobre a "possibilidade intermediária" porque espero que a parte 2, que já estava pronta e será publicada em alguns dias (agora como parte 4), o ajude a entender melhor o que quero dizer.

No entanto, farei desde já alguns esclarecimentos: na minha opinião, a pergunta "quem determinou o que acontece?" é semelhante àquela famosa pergunta "você já parou de espancar sua mulher?": ao menos para quem nunca espancou sua mulher, o que quer que se responda será um erro. Digo isso porque não associo o decreto divino ao determinismo, e tampouco identifico a liberdade humana com uma suposta autonomia, no sentido em que Wright entende o termo. Essas associações me parecem fruto de uma confusão de níveis ontológicos.

Depois, o sr. disse: "Creio que a questão agora seria uma de exegese, para ver se a Bíblia realmente ensina a noção de livre arbítrio, no sentido no qual os arminianos (e talvez você, mas não sei com certeza) acreditam". Respondo, em primeiro lugar, que o sr. não deu atenção ao que eu disse já no segundo parágrafo do texto, nem ao que eu disse no parágrafo final do mesmo texto. Além disso, meu desacordo com Wright é filosófico, e não exegético, como expliquei acima. Fico feliz em saber que Wright e o sr. mesmo creem em mistérios. Contudo, não há nenhuma evidência disso em A soberania banida: há ali, ao contrário, um constante tom de condenação aos que creem nessas coisas. Ele chega até a dizer que a apologética cristã é enfraquecida por admissões desse tipo. Então, ou Wright se expressou mal nisso também, ou há alguma outra coisa que não estou captando, e que o sr. poderá explicar se quiser. Só posso julgar o livro pelo que nele está escrito, e o livro é racionalista. Não acuso o sr. de racionalismo. A única coisa de que o "acuso" é de não ter lido meu texto com suficiente isenção e atenção, talvez por ter visto nele juízos negativos (e, na sua opinião, injustos) sobre um amigo querido - o que, aliás, é bastante compreensível.

Concordo quando o sr. diz que "não é racionalismo não bíblico recusar-se a crer em contradições quando existem explicações razoáveis, tanto filosóficas como exegéticas, para removê-las". Naturalmente, eu não acusaria alguém de racionalismo (bíblico ou não) apenas por fornecer explicações razoáveis para algo. Apenas não acho que Wright tenha fornecido essas explicações razoáveis. Acuso Wright de racionalismo por fornecer explicações irrazoáveis à maneira racionalista. E isso nos leva às perguntas adicionais que o sr. fez a partir de minha resposta ao comentário do Aprendiz.

1. "O que é este desvio e qual evidência existe de que é uma novidade?" O desvio é a crença de que a relação entre a soberania divina e a responsabilidade humana não tem nada de inacessível à nossa mente, e também a adesão a um esquema determinista que nega a liberdade do homem. Com relação ao primeiro ponto, já que o sr. leu minha crítica a Crampton (espero que tenha lido as quatro partes), sugiro que leia o texto indicado ali, nas últimas frases, para o post Eu não sei, do pastor Augustus Nicodemus, com o qual concordo inteiramente e que trata do assunto com grande clareza. Veja também o longo comentário feito ao texto do pastor Augustus por Hermisten Maia, mostrando que Calvino tinha uma posição semelhante. Além disso, mostrei na primeira parte de minha crítica a Crampton que essa visão está também declarada na Confissão de Fé de Westminster, que também afirma expressamente a existência de liberdade no homem. É a isso, basicamente, que eu me refiro. E em minhas outras leituras dos reformadores e puritanos não encontrei nada que se assemelhasse às posições de Wright quanto a esses pontos específicos. Se o sr. encontrou, peço que use algo de seus trinta e tantos anos de estudos para demonstrar isso. Para mim, será um prazer ouvi-lo.

2. "Você está dizendo que a negação do livre-arbítrio que ele faz é um desvio recente?" Essa é outra daquelas perguntas irrespondíveis. Como eu disse acima, apenas nego o entendimento determinista (no plano ontológico) que Wright constrói a partir da soberania de Deus e da total depravação humana.

3. "Também, qual é a natureza do estrago que isto tem feito?" Sobre a confiança excessiva na razão, expliquei o estrago nas críticas a Crampton, sobretudo na última parte, que o sr. leu e com a qual afirma ter concordado em parte. Se quiser explicar melhor suas impressões sobre isso, talvez possamos nos aprofundar nesse ponto. Além disso, há a questão do erro filosófico propriamente dito, sobre o qual a continuação do texto deverá lançar mais luz, ainda que não de modo exaustivo.

4. "Você disse que é difícil definir o que é racionalismo." Suponho que o sr. esteja se referindo às palavras finais do meu breve texto sobre o racionalismo de Gordon Clark. Na verdade, o que eu disse é que é trabalhoso descrever o racionalismo. Eu não tinha em mente a produção de uma simples definição, e sim um mergulho exaustivo no espírito racionalista em busca de um diagnóstico de sua doença. Para os nossos propósitos atuais, acho que é suficiente dizer que o que entendo por racionalismo inclui o horror à ideia de que algo não seja acessível à compreensão humana, a confiança absoluta na razão como árbitro último daquilo em que se deve crer ou não e uma ênfase excessiva sobre as faculdades analíticas da mente humana em detrimento de outros modos de conhecimento.

Quanto à sua pergunta final, sobre em que discordo do irracionalismo contemporâneo, há coisas demais de que devo discordar, a tal ponto que me considero tão distante dele quanto do racionalismo contemporâneo. Eu não disse nada em parte alguma em favor do irracionalismo. Sua pergunta, portanto, não tem cabimento. Mas se o sr. quiser fazer perguntas mais precisas sobre pontos importantes do irracionalismo contemporâneo, prometo respondê-las, para lhe dar uma ideia mais precisa do que penso a respeito. À parte disso, tudo o que posso fazer pelo sr. é sugerir que leia meu texto Séculos de trapalhadas, no qual exponho o racionalismo e o irracionalismo como farinha do mesmo saco, como costumamos dizer.

Estou ciente de que não eliminei todas as suas dúvidas, nem expus de modo suficientemente profundo a maneira como vejo a questão. Mas continuemos conversando; creio que aos poucos, a partir da publicação da parte 2, começaremos a nos entender. Muito obrigado por sua visita e pela oportunidade oferecida para um aprofundamento das reflexões neste espaço. Um grande abraço!

5 comentários:

Osmar Neves disse...

Boa noite André!

A minha avaliação é que você tocou em questões periféricas na sua resenha sobre o livro do Wright e não abordou em detalhes a questão principal: num universo criado e sustentado momento a momento por Deus, sendo Deus a causa primeira de todas as coisas, existe algo como a suposta "liberdade humana"? Veja, Deus não apenas criou mas sustenta TODA a realidade (estamos inclusos aqui também), momento a momento (não somos deístas), inclusive os fatores internos e externos que influenciam os nossos processos de cognição e volição. Diante do exposto, concluo que toda a nossa interação com a realidade (e com nós mesmos) é mediada por Deus; então onde está a liberdade humana? Um abraço e até mais!

André disse...

Olá, Osmar!

Antes de qualquer outra coisa, permita-me observar que não fiz nenhuma "resenha sobre o livro do Wright", mas sim um comentário pontual e não exaustivo sobre o segundo capítulo apenas. E, até onde vai minha lembrança, isso que você chama de "a questão principal" sequer é levantado ali, até porque a linha de argumentação seguida por Wright é bem diferente, e mesmo, segundo penso, incompatível com a sua. Pois ele nega a liberdade humana apelando para a suposta existência de uma cadeia causal inescapável para nós, a qual determina o futuro do mundo em função do presente, e o presente em função do passado. Ele tem em mente, portanto, as relações entre os eventos da criação ao longo do tempo, situa seu determinismo nesse plano e sustenta que, sem esse determinismo, Deus não poderia conhecer ou decretar o que acontece. O pressuposto embutido no argumento de Wright tem mesmo algum parentesco com o deísmo, e por isso considero que o argumento levantado por você é antes uma refutação que um reforço ao argumento dele: se Deus sustenta todas as coisas diretamente, Ele não precisa determinar univocamente todas as coisas e suas interrelações no plano ontológico para garantir que tudo acontecerá segundo o decreto. Ou seja, não há necessidade dessa cadeia causal atuando de modo incontornável de momento a momento.

Ao mesmo tempo, porém, a existência que Deus nos concede, embora sustentada por Ele mesmo constantemente, é real e objetiva, assim como as relações que cada um de nós tem com os demais seres. Por isso, eu não vejo razão para concordar que "toda a nossa interação com a realidade (e com nós mesmos) é mediada por Deus"; acho melhor dizer que é possibilitada por Deus, em virtude das leis que Ele estabeleceu sobre sua criação. Ou seja, o fato de Deus sustentar o tempo todo a existência de todas as coisas não impede que Ele mesmo imponha leis que regem essa existência e suas interações de um momento a outro. Dito isso, posso resumir minha posição dizendo que não existe determinismo no nível dessas leis, que denomino "plano ontológico" - e, portanto, nesse nível, a liberdade humana existe. Não afirmo que exista uma autonomia do homem em relação ao decreto de Deus, o qual creio que se realiza de alguma forma relacionada justamente à Sua ação sustentadora.

Espero ter esclarecido sua dúvida. Mas, se não aconteceu isso, é só perguntar de novo. Abraços!

Osmar Neves disse...

Bom dia André!

Primeiramente, obrigado por corrigir-me sobre a distinção entre resenha e comentários pontuais. Não tenho certeza (faz alguns meses, mais de ano, que li o livro do Wright, e estou sem ele agora) mas você parece ter razão sobre ele não colocar a questão principal, considerada assim por mim, da forma direta como fiz na pergunta, ou seja, provavelmente foi uma inferência minha da leitura do livro e não propriamente uma questão abordada de forma incisiva e direta por ele. Confesso que não entendi a sua resposta e não captei a solidez da sua contestação e continuo concordando com o Wright que o Decreto de Deus determina todos os eventos e acrescento que a sustentação contínua da realidade por Deus realiza o cumprimento do Seu propósito (vejo complementação e não incompatibilidade com a posição do Wright). Deus determina e garante o cumprimento da sua vontade, manifestando assim, a meu ver, os atributos da Onisciência e Onipotência: todos os eventos são determinados por Deus, Ele é a causa primeira de todas as coisas e não existe causa secundária alheia ao Seu Decreto e controle (daí sua Onisciência - todos os eventos são conhecidos por Deus porque foram determinados por Deus), e Deus controla e sustenta a realidade, momento a momento (daí sua Onipotência - somente ocorrem ou existem aquilo que é sustentado por Deus, sejam nossos pensamentos ou as leis fundamentais do universo). Aqui é que concordo contigo sobre a existência de mistérios: como é possível a existência de uma realidade distinta mas dependente de Deus? Eu sei que é assim, a Bíblia me diz que é assim, mas não sei COMO pode ser assim! Talvez resida aqui um pouco do encanto, melhor, do feitiço, do panteísmo. Acho que isso talvez tenha um pouco a ver, relaciona-se, com outra questão abordada pelo Wright: o problema do uno e dos muitos, a diversidade da realidade. Sobre a sua resposta, ela parece ser um exemplo de compatibilismo, é isso? Bem, eu não simpatizo com o compatibilismo, e ainda não fui convencido pelos seus argumentos. Por isso, por favor, desenvolva mais a o seu pensamento, inclusive porque não entendi isso aqui:

"se Deus sustenta todas as coisas diretamente, Ele não precisa determinar univocamente todas as coisas e suas interrelações no plano ontológico para garantir que tudo acontecerá segundo o decreto. Ou seja, não há necessidade dessa cadeia causal atuando de modo incontornável de momento a momento."

Obrigado e um abraço!

André disse...

Caro Osmar, já que você mesmo afirma (e eu concordo) não ter entendido o que eu disse, vou mudar de estratégia. Na verdade, você não foi o único que não entendeu alguma coisa do que andei dizendo sobre esse tema. Tive e estou tendo conversas em torno disso não só aqui no blog, mas também em outros lugares. Estou planejando uma postagem (ou mais de uma) que responda, da maneira mais didática possível, às dúvidas e objeções de todos. Seus comentários são interessantes e pretendo inclui-los nisso. Apenas peço de sua parte um pouco de paciência até que o resultado seja publicado. Até porque os feedbacks ainda não pararam de chegar.

Além disso, continue acompanhando o Tamos Lendo!, onde devo continuar comentando o livro de Wright - ao qual, aliás, tenho a fazer mais elogios que críticas.

Abraços, e até logo!

Ricardo Mamedes disse...

André,

Um dia, há algum tempo, eu lhe disse que nutria uma ideia sobre liberdade e que era limítrofe entre determinismo e responsabilidade humana. E, olha, o que eu pensava, sem conseguir colocar em palavras, ou concatenar ideias, era algo mais ou menos como você colocou aí nos comentários para o Osmar.

Só agora li e gostei muito. Ordene mais os seus pensamentos, pois está sendo muito salutar, pelo menos para mim.

Ricardo