27 de julho de 2007

O impulso e o salto

Dando continuidade à postagem anterior, publico agora as cartas restantes do diálogo entre Sheldon Vanauken e C. S. Lewis. Talvez algum dia eu dedique um post à análise de alguns pontos interessantes nessa troca de correspondências. Quem quiser ler os textos em inglês pode fazê-lo acessando este blog, bastando procurar o post Encounter with Light e ir subindo até o Encounter with Light, part VI. Essas cartas foram publicadas pelo próprio Vanauken, juntamente com outras cartas de Lewis, no livro A severe mercy ("uma misericórdia severa").

Segunda carta de Vanauken

Meu dilema fundamental é este: não posso crer em Cristo a menos que eu tenha fé, mas não posso ter fé a menos que eu creia em Cristo. Este é "o salto". Se ser um cristão é ter fé (e claramente é), eu posso colocar isso assim: devo aceitar Cristo para me tornar um cristão, mas devo ser um cristão para aceitá-lo. Eu não tenho fé e assim ainda não creio; mas todo mundo parece dizer: "Você deve ter fé para crer." Como eu consigo isso? Ou você me dirá algo diferente? Há uma prova? Pode a Razão carregar alguém através do golfo... sem fé?

Por que Deus espera tanto de nós? Por que ele requer esse esforço para crer? Se Ele deixasse claro que Ele existe - tão claro quanto uma aurora, uma rocha ou o choro de um bebê - não estaríamos alegres em escolhê-Lo e a sua Lei? Por que deveria o correto exercício de nosso livre arbítrio conter esse medo da desonestidade intelectual?

Devo escrever mais sobre o tema "desejar que seja verdadeiro" - embora eu concorde que provavelmente tenho desejos em ambos os lados, e meu desejo não me ajuda a resolver problema algum. Seu argumento de que Hitler e Stalin (e eu) ficariam horrorizados ao descobrir um Mestre de quem nada poderia ser retido é muito forte. Realmente, não há nada no cristianismo que seja tão repugnante para mim quanto a humildade - os joelhos dobrados. Se eu soubesse além da esperança ou do desespero que o cristianismo é verdadeiro, minha luta para sempre a partir de então teria de ser contra o orgulho de "a espinha pode quebrar, mas não se dobrará". Ainda assim, Sir, não aceitaria eu (e até Stalin) a humilhação perante o Mestre para escapar ao horror de cessar de existir, do vazio na morte? Além do mais, o conhecimento de que Jesus é de fato o Senhor não seria meramente uma notícia agradável para alguns de nossos raros desejos. Significaria esmagadoramente: (a) que o Materialismo é Erro, assim como feiúra; (b) que os vários futuros bestiais preditos pelos marxistas, pelos freudianos e pelos sociólogos manipuladores não seriam reais (mesmo se acontecessem); (c) que o crescimento de alguém em direção à sabedoria - a construção da alma - não seria perdido; e (d), acima de tudo, que o bem e a beleza sobreviveriam. E então eu desejo que isso seja verdadeiro e aceitaria qualquer humilhação, penso eu, para que fosse verdadeiro. A parte ruim de desejar que isso seja verdadeiro é que qualquer impulso que eu sinta em direção à crença é considerado suspeito de ter se originado do desejo; a parte boa é que o desejo leva adiante. E eu prosseguirei; devo prosseguir, tanto quanto eu puder.

Segunda carta de Lewis

A contradição "nós devemos ter fé para crer e devemos crer para ter fé" pertence à mesma classe daquelas pelas quais os filósofos eleatas provaram que todo movimento é impossível. E há muitos outros. Você não pode nadar a menos que possa sustentar-se na água e não pode sustentar-se na água a menos que possa nadar. Ou, novamente, em um ato de volição (e.g., acordar pela manhã), o próprio início do ato em si é voluntário ou involuntário? Se for voluntário, então você deve tê-lo desejado, você já o estava desejando, ele não foi realmente o início. Se for involuntário, então a continuação do ato (sendo determinada pelo primeiro movimento) é involuntária também. Mas a despeito disso nós nadamos e saímos da cama.

Eu não penso que haja uma prova demonstrativa (como em Euclides) do cristianismo, nem da existência da matéria, nem da boa vontade e honestidade de meus melhores e mais antigos amigos. Penso que todos os três (exceto talvez o segundo) são muito mais prováveis que as alternativas. O argumento em favor do cristianismo em geral é bem dado por Chesterton; e eu tentei fazer algo em minhas Palestras radiofônicas. Quanto a por quê Deus não o faz demonstravelmente claro: estamos certos de que Ele está sequer interessado no tipo de teísmo que seria um assentimento logicamente compelido a um argumento conclusivo? Estamos nós interessados nisso em assuntos pessoais? Eu demando de meu amigo uma confiança em minha boa fé que seja certa sem prova demonstrativa. Não seria confiança de modo algum se ele esperasse por uma prova rigorosa. Além disso tudo, os próprios contos de fadas encarnam a verdade. Otelo acreditou na inocência de Desdêmona quando foi provada, mas era tarde demais. "O louvor de quem espera até que tudo o recomende é vão." A magnanimidade, a generosidade que confiará em uma probabilidade razoável, é requerida de nós. Mas suponha que alguém acreditou e estava errado no fim das contas. Pois então você teria prestado ao universo um cumprimento que ele não merece. Seu erro seria mesmo mais interessante e importante que a realidade. E, contudo, como poderia ser assim? Como poderia um universo idiota ter produzido criaturas cujos meros sonhos são tão mais fortes, melhores e mais sutis que ele próprio?

Note que a vida após a morte, que ainda parece a você a coisa essencial, foi ela própria uma revelação posterior. Deus treinou os hebreus por séculos para acreditarem nele sem prometer-lhes uma vida no além e, bendito seja Ele, treinou-me da mesma forma por cerca de um ano. É como o príncipe disfarçado do conto de fadas, que conquista o amor da heroína antes que ela saiba que ele é algo mais que um lenhador. O que seria um suborno se viesse antes teve melhor recepção depois. É muito claro, a partir do que você diz, que você tem desejos conscientes de ambos os lados. E agora outro ponto sobre desejos. Um desejo pode levar a falsas convicções, concedido. Mas o que a existência do desejo sugere? Em uma época eu me impressionava muito com o verso de Arnold: "Nem o estarmos famintos prova que teremos pão." Mas seguramente, embora não prove que um homem em particular conseguirá comida, prova que existe tal coisa como a comida! I.e., se fôssemos uma espécie que normalmente não come, se não fôssemos projetados para comer, sentir-nos-íamos famintos? Você diz que o universo materialista é "feio". Eu gostaria de saber como você descobriu isso! Se você é realmente um produto de um universo materialista, como é que você não se sente em casa nele? Os peixes se queixam do mar por estarem molhados? Ou, se o fizessem, esse fato por si mesmo não sugeriria que eles nem sempre foram, ou nem sempre serão, criaturas puramente aquáticas? Note o quanto nós estamos perpetuamente surpresos com o Tempo. ("Como o tempo voa! Imagine, John crescido e casado! Mal posso acreditar!") Em nome dos céus, por quê? A menos, realmente, que haja algo em nós que não é temporal.

Humildade total não está no Tao porque o Tao (como tal) nada diz sobre o Objeto ao qual ela seria a resposta correta: assim como não há lei sobre estradas de ferro nos atos da Rainha Elizabeth. Mas do grau de respeito que o Tao exige pelos ancestrais, pais, anciãos e professores, está muito claro o que o Tao prescreveria diante de um objeto tal como Deus. Mas eu penso que você já está nas malhas da teia! O Espírito Santo está atrás de você. Duvido que você consiga escapar!

Terceira carta de Vanauken

Eu escolho crer no Pai, Filho e Espírito Santo - em Cristo, meu Senhor e meu Deus. O cristianismo tem o som característico, a textura da verdade única. Da verdade essencial. Por ele a vida torna-se cheia em vez de vazia, significativa em vez de insignificante. O cosmos se torna bonito no Centro, em vez de ruidosamente feio sob o amável pathos da primavera. Mas o vazio, a insignificância e a feiúra podem apenas ser vistos, penso eu, quando se vislumbrou a plenitude, o significado e a beleza. É quando o céu e o inferno foram ambos vislumbrados que voltar é impossível. Mas prosseguir parecia impossível também. Um vislumbre não é uma visão. Uma escolha foi necessária, e não há certeza. Pode-se apenas escolher um lado. Assim eu - eu agora escolho meu lado: escolho a beleza; escolho o que amo. Mas escolher crer é crer. Isso é tudo o que posso fazer: escolher. Eu confesso minhas dúvidas e peço ao meu Senhor Cristo para entrar em minha vida. Eu não sei o que Deus é, não faço senão dizer: "Faça-se em mim conforme a Tua vontade." Não afirmo que estou sem dúvida, não faço senão pedir ajuda, tendo escolhido, para superá-la. Não faço senão dizer: "Senhor, eu creio - ajuda-me em minha incredulidade."

Terceira carta de Lewis

Minhas orações foram respondidas. Não, um vislumbre não é uma visão. Mas para um homem em uma estrada montanhosa à noite, um vislumbre dos próximos três pés de estrada pode importar mais que uma visão do horizonte. E talvez deva haver sempre a falta estritamente necessária de certeza demonstrativa para tornar a livre escolha possível. Pois o que poderíamos fazer senão aceitar se a fé fosse como a tábua de multiplicação?

Haverá um contra-ataque sobre você, você sabe, então não fique muito alarmado quando ele vier. O inimigo não verá você desaparecer na companhia de Deus sem um esforço para reclamá-lo. Ocupe-se em aprender a orar e (se você já chegou a uma conclusão sobre a questão denominacional) faça a confirmação.

Bendito seja você, e seja cem mil vezes bem-vindo. Faça uso de mim de qualquer forma que lhe agrade, e oremos um pelo outro sempre.

26 de julho de 2007

O desejo de saltar

Neste post e no próximo, que pretendo publicar amanhã ou depois, vou fazer algo inédito neste blog: publicar textos que não são de minha autoria. Às vezes encontro textos muito bons, e não muito grandes, que valem o esforço da tradução. E, não havendo problemas de direitos autorais ou algo do tipo, eu vou mesmo fazer isso de vez em quando. É claro que eu não perderia tempo traduzindo algo já traduzido; nesse caso, encontrando uma tradução na internet, o máximo que eu faria é recomendar o texto em questão e colocar um link para ele. Aliás, vou postar aqui qualquer hora dessas uma relação de textos interessantes vinculados a assuntos que já discuti.

Seguem-se seis cartas escritas no final de 1950 e início de 1951. Três delas foram escritas por um jovem estudante agnóstico, Sheldon Vanauken, e as outras três foram redigidas em resposta por um professor de meia-idade, cristão convertido do ateísmo, C. S. Lewis. Nenhuma das cartas é longa, e todas elas, apesar das diferentes perspectivas apresentadas em rápida sucessão, têm em comum a preocupação com a relação entre o cristianismo e a racionalidade, mas sem descer aos pormenores filosóficos, históricos e psicológicos da apologética comum. O resultado é um belo diálogo, do início ao fim. Vou postar hoje a primeira carta de cada um. Dentro de alguns dias publicarei as outras.

Primeira carta de Vanauken

Escrevo por um impulso - que pela manhã poderá parecer tão arrogante e presunçoso que eu deva destruí-lo. Mas uns poucos momentos atrás eu senti que havia embarcado para uma viagem que algum dia me levaria a Deus. Mesmo agora, cinco minutos depois, estou inclinado a adicionar o qualificativo "talvez". Há um passo que eu não posso dar; ocorre-me que você, tendo-o dado, tendo ligado a certeza ao cristianismo, poderia, não dá-lo por mim, mas dar-me uma dica de como se deve fazê-lo. Tendo sentido o apelo estético e histórico do cristianismo, tendo começado a estudá-lo, tomei consciência da força e "possibilidade" da resposta cristã. Eu gostaria de acreditar nela. Eu quero conhecer Deus - se ele for cognoscível. Mas não consigo orar com alguma convicção de que Alguém ouve. Não posso crer.

Muito simplesmente, parece-me que algum poder inteligente fez o universo e que todos os homens devem conhecê-lo, axiomaticamente, e devem sentir reverência diante da infinitude desse poder. Parece-me natural que os homens, conhecendo e sentindo assim, tentem elaborar a partir dessa simplicidade - os profetas, o Príncipe Buda, o Senhor Jesus, Mohammed, os brâmanes - e assim surgiram as religiões do mundo. Mas como pode apenas uma delas ser distinguida como verdadeira? Para um visitante inteligente de Marte, o cristianismo não pareceria apenas uma em uma hoste de religiões?

Eu disse no começo que eu senti que estava trilhando uma longa estrada que um dia me levaria ao cristianismo; devo, então, acreditar de algum modo que ele é a verdade. Ou ocorre apenas que eu quero acreditar nisso? Mas, ao mesmo tempo, alguma outra coisa em mim diz: "Querer crer é o caminho para a autodecepção. A honestidade é melhor que qualquer conforto fácil. Tenha coragem para encarar o fato de que todos os homens podem ser nada para o poder que fez os sóis."

Ainda assim eu gostaria de crer que o Senhor Jesus é de fato meu misericordioso Deus. Para os apóstolos, que puderam falar com Jesus, isso deve ter sido fácil. Mas eu vivo em um "mundo real" de ônibus vermelhos, meias de nylon e bombas atômicas; tenho apenas o registro de supostas experiências com a divindade feito por outros. Nenhum anjo, nenhuma voz, nada. Ou, sim, uma coisa: cristãos vivos. De alguma forma você, neste mesmo mundo, com os mesmos dados que eu, é mais significativo pra mim que os bispos do passado fiel. Você efetuou o salto do agnosticismo à fé. Como? Eu não sei exatamente como me atrevo a escrever isto a você, um ocupado professor de Oxford, e não um sacerdote. Na verdade eu sei: você serve a Deus, não a si mesmo; você deve fazê-lo, se é um cristão. Talvez, se eu tivesse discernimento para ver isso, minha resposta esteja no fato mesmo de que eu escrevi.

Primeira carta de Lewis

Minha própria posição quando estive no umbral do cristianismo foi exatamente o oposto da sua. Você deseja que ele seja verdadeiro; eu esperava fortemente que não fosse. Ao menos esse era o meu desejo consciente: você pode suspeitar que eu tinha desejos inconscientes de um tipo muito diferente e que foram eles que finalmente me empurraram para dentro. Certo: mas então eu posso igualmente suspeitar que, por baixo do seu desejo consciente de que ele seja verdadeiro, espreita um forte desejo inconsciente de que não seja. O que resulta disso é que todo o pensamento moderno, embora possa ser útil para explicar a origem de um erro que já se sabe ser um erro, é perfeitamente inútil para decidir qual de duas convicções é o erro e qual é a verdade. Pois (a) Nunca se conhecem todos os desejos de alguém, e (b) Em questões muito grandes, como esta, mesmo os desejos conscientes estão quase sempre empenhados de ambos os lados. O que eu penso que pode ser dito com certeza é isto: a noção de que todo mundo gostaria que o cristianismo fosse verdadeiro, e que portanto todos os ateus são homens corajosos que aceitaram a derrota de todos os seus mais profundos desejos, é simplesmente um absurdo descarado. Você acha que pessoas como Stalin, Hitler, Haldane, Stapledon (um escritor muito versátil, aliás) se agradariam em levantar de manhã e descobrir que não eram seus próprios mestres, que elas têm um Mestre e um Juiz, que não havia nada, nem nos mais profundos recessos de seus pensamentos, acerca de que elas poderiam dizer-lhe "Fique de fora! Propriedade privada. Isso é assunto meu"? Você acha? Ratos! Sua primeira reação seria (como foi a minha) de raiva e terror. E eu tenho muita dúvida de que mesmo você acharia isso simplesmente agradável. Não é a verdade esta: que isso satisfaria alguns de nossos desejos (que nós na verdade sentimos bem raramente) e ultrajaria uma boa quantidade de outros? Então deixemos pra lá o assunto dos desejos. Ele nunca ajudou ninguém a resolver problema algum.

Não concordo com seu retrato da história da religião: Cristo, Buda, Mohammed e outros elaborando a partir de uma simplicidade original. Eu creio que o budismo é uma simplificação do hinduísmo e que o Islam é uma simplificação do cristianismo. A religião clara, lúcida, transparente e simples (Tao mais um deus obscuro e ético ao fundo) é um desenvolvimento posterior, normalmente surgindo entre pessoas altamente educadas em grandes cidades. O que você realmente tem no início é ritual, mito e mistério, a morte e o retorno de Balder ou Osíris, as danças, as iniciações, os sacrifícios, os reis divinos. Contra isso estão os filósofos, Aristóteles ou Confúcio, dificilmente alguma forma de religião. Os únicos dois sistemas em que os mistérios e as filosofias se juntam são o hinduísmo e o cristianismo: aqui você tem ambos, Metafísica e Culto (em continuidade com os cultos primevos). Eis porque meu primeiro passo foi certificar-me de que ou um ou o outro tinha a resposta. Pois a realidade não pode ser uma que apela apenas aos selvagens ou apenas aos intelectuais. As coisas reais não são assim (e.g., a matéria é a primeira e mais óbvia coisa que encontramos: leite, chocolate, maçãs, e também o objeto da física quântica). Está fora de questão a hipótese de um mero aglomerado de religiões desconexas. A escolha é entre (a) O retrato materialista do mundo, em que eu não posso crer. (b) As reais religiões arcaicas e primitivas, que não são morais o suficiente. (c) A (pretensa) realização delas no hinduísmo. (d) A pretensa realização delas no cristianismo. Mas a fraqueza do hinduísmo é que ele não une de fato os dois fios. A irredimível religião selvagem prossegue na aldeia, o eremita filosofa na floresta, e nenhum realmente interage com o outro. É apenas o cristianismo que compele um intelectual como eu a participar de um banquete ritual de sangue, e também compele um convertido da África Central a tentar um iluminado código de ética.

Você alguma vez tentou ler The everlasting man, de Chesterton? É a melhor apologética popular que conheço.

Enquanto isso, a tentativa de praticar o Tao é certamente a linha certa. Você leu os Analectos de Confúcio? Ele termina dizendo: "Este é o Tao. Eu não sei se alguém alguma vez o observou." Isso é significativo: pode-se de fato ir diretamente daí à Epístola aos Romanos.

Não sei se algo disso tudo é de alguma utilidade. Fique à vontade para escrever novamente, ou telefonar, se você achar que posso ser de alguma ajuda.

23 de julho de 2007

Diálogo sobre as mortes

Já mencionei em algum post anterior o quanto a biblioteca da UFSCar foi importante na minha vida. Fiquei maravilhado quando a visitei pela primeira vez: eu nunca vira tantos livros juntos. E na medida em que fui andando por lá e explorando cada prateleira, fui encontrando cada vez mais obras que pareciam dignas de atenção. Ao longo dos meus cinco anos de faculdade as novas descobertas se deram muitas e muitas vezes, a ponto de se tornarem rotina. Creio que isso explica ao menos em parte o fato de, nesse período, eu ter lido tantos livros e relido tão poucos. Agora que me formei, embora continue morando em São Carlos, não vou mais com freqüência à universidade, até porque o campus fica um tanto fora de mão. Ainda restam muitas coisas boas pra ler naquela biblioteca, mas esse afastamento provavelmente é um dos fatores que me levaram a perceber a necessidade de corrigir essa minha falha com relação aos livros já lidos que são bons o suficiente para merecer uma releitura. A segunda leitura de um bom livro pode chegar a ser mais instrutiva que a primeira, especialmente se feita alguns anos depois. Eu já sabia disso, é claro, mas preferi prosseguir tentando dar conta do que aparecia pela frente a aprofundar e sedimentar o que já havia passado. Ultimamente, porém, notei que precisava dar uma pausa para reorganizar as coisas antes de prosseguir. Neste ano devo ter gastado mais tempo relendo do que propriamente lendo. Não pretendo permanecer nessa fase indefinidamente, mas vejo que tem sido uma experiência muito boa.

Meu tempo, porém, não tem sido suficiente para que eu releia tudo o que gostaria. E dentre os livros lidos que mais me causam saudades no momento estão, é claro, os de J. R. R. Tolkien, especialmente O Senhor dos Anéis, O Silmarillion e os Contos inacabados, todos os quais eu li há mais de três anos. Tolkien está seguramente entre os escritores que mais me ensinaram. Mas, não dispondo de tempo ou coragem para reler suas obras maiores, eu tento solucionar o impasse lendo de vez em quando as menores, que felizmente não faltam. O filólogo de Oxford publicou relativamente pouco em vida, mas deixou montanhas de textos inéditos, datilografados ou manuscritos, concluídos ou não, que seu filho Christopher compilou, editou e publicou ao longo de muitos anos (não sei se ele continua a fazê-lo). Esse tipo de coisa é bem fácil de se encontrar na internet, onde se vêem, por exemplo, muitas das cartas de Tolkien, bem como muitos dos textos que integram a série em doze volumes HoME (History of Middle-Earth). Num desses volumes está um dos mais belos textos de Tolkien que já li, o Athrabeth. Pretendo fazer hoje alguns breves comentários a respeito desse texto. Ele é um pouco longo, mas nada demais. Há uma tradução no site Valinor e outra no Dúvendor. A primeira está melhor (pelo menos não está repleta de erros de digitação e concordância) e possui algumas notas, de modo que a utilizarei em eventuais citações, mas indico também a segunda por conter logo no início alguns esclarecimentos textuais deixados por Christopher Tolkien.

Embora eu não apresente aqui um resumo do Athrabeth, tentarei escrever de modo que ninguém precise tê-lo lido para entender o que direi acerca dele. Mas eu recomendo entusiasticamente essa leitura a quem ainda não a realizou, seja antes, durante ou depois deste post (é claro que eu não dedicaria um post a um texto que não considero digno de ser conhecido pelos meus leitores). Apenas advirto que o Athrabeth insere-se num ponto preciso da narrativa ficcional criada por Tolkien, de modo que a leitura poderá ser muito melhor aproveitada por quem conhece ao menos os pontos essenciais dessa história. Não, porém, que o texto se torne incompreensível sem isso. Ao contrário, um dos principais motivos que me levam a gostar tanto dele é o fato de que ele trata de questões muito concretas e gerais da experiência humana, e qualquer um que prestar suficiente atenção em si mesmo e no texto poderá perceber isso sem grandes dificuldades. Ainda assim, provavelmente escaparão aos leitores que desconhecem a obra de Tolkien alguns detalhes que, embora secundários do ponto de vista da mensagem transmitida pelo texto, são relevantes de uma perspectiva estritamente literária, conferindo-lhe inclusive parte do seu mérito estético. De qualquer forma, vou tentar apresentar abaixo, em poucas linhas, alguns elementos da história da Terra-média para facilitar a leitura para quem desconhece o conteúdo de O Silmarillion.

A palavra athrabeth, num dos idiomas élficos inventados por Tolkien, o sindarin, significa "diálogo", "conversa" ou "debate". O nome completo do texto é, na verdade, Athrabeth Finrod ah Andreth ("Diálogo de Finrod e Andreth"). O contexto é o da guerra dos elfos Noldor contra Morgoth, de quem Sauron, o vilão de O Senhor dos Anéis, não era então senão um lacaio. Morgoth, cujo nome original era Melkor, foi o rebelde dentre os Valar, os poderosos espíritos que ordenaram o mundo e o governam desde sua morada em Aman, nos confins ocidentais do mundo. De lá ele fugiu, antes da criação do sol e da lua, carregando o mais precioso tesouro dos Noldor, sendo então perseguido por estes, contra a vontade dos Valar, até a Terra-média, onde eles sitiaram a fortaleza do Inimigo por mais de quatro séculos. Finrod Felagund era um dos príncipes mais sábios desse povo. Chegando ao novo continente ele fundou um poderoso reino e o governou até sua heróica morte. Foi ele ainda o primeiro elfo do Oeste a tomar conhecimento da existência dos homens, ao deparar-se com um grupo deles, liderados por Bëor, que veio a ser ancestral de muitos homens importantes na história da Terra-média. Entre seus descendentes, porém, também esteve Andreth, uma mulher sábia, respeitada por homens e elfos (edain e eldar, na língua destes). O texto não traz a data precisa do diálogo travado entre essas duas importantes figuras, mas certamente não foi muito antes do ano 455 da Primeira Era do Sol, data na qual as forças de Morgoth finalmente puseram fim ao cerco dos Noldor (isso significa que o diálogo ocorreu cerca de 6600 anos antes do aniversário de 111 anos do hobbit Bilbo Bolseiro, que é a primeira cena de O Senhor dos Anéis).

O tema central da conversa travada entre os dois sábios é a morte, com a qual as duas raças possuem relações muito distintas. Pois enquanto os homens têm uma vida de poucas décadas, que termina em velhice e decrepitude, com o espírito partindo para algum lugar além do mundo, e do qual nem homens nem elfos têm qualquer notícia, estes últimos não passam pela morte senão por acidente, e não compartilham do destino das demais criaturas vivas de Arda. Os elfos podem morrer em batalha ou definhar de tristeza, mas não sofrem envelhecimento ou doença, e suas habilidades e beleza muito dificilmente encontram rivais entre os mortais. E, mesmo quando morrem, os elfos têm seus espíritos conduzidos aos Salões de Espera, nos confins do mundo (mas ainda dentro dele), onde aguardam a oportunidade de serem reunidos aos seus corpos no futuro. Finrod e Andreth discutem longamente na tentativa de elucidar as causas e as implicações de tão profundas diferenças de constituição. Seriam os homens naturalmente destinados a não mais que uma curta estadia neste mundo, ou essa condição foi imposta por condições alheias à sua natureza intrínseca? Qual seria o papel da maldade de Melkor na progressiva degeneração da matéria de Arda em geral, e dos corpos humanos em particular? Quando o mundo atingir seu ocaso, o que será dos elfos, tão inseparavelmente ligados a ele? Qual seria nisso tudo o propósito de Eru, o Todo-Poderoso? Até que ponto são verdadeiras as tradições dos homens, tão profundamente conhecidas por Andreth? Até que ponto vai o conhecimento dos próprios Valar, cuja parcela transmitida aos elfos nas Terras Imortais é tão cuidadosamente guardada por Finrod? Qual é exatamente a relação entre hröa e fëa, corpo e espírito? Em quê deve se fundamentar a esperança de uma solução futura para todos esses problemas?

Essas e outras questões são tratadas ao longo do diálogo. Como eu disse num post anterior, considero esse o mais nitidamente cristão de todos os textos narrativos de Tolkien que já li (mais até que o Ainulindalë, o conto da criação de Arda). Boa parte dos elementos filosóficos e teológicos do Athrabeth é facilmente reconhecível até por um leitor bastante ignorante em matéria de religião. Já outros, creio eu, só serão notados por leitores com conhecimentos mais aprofundados sobre o assunto. Como não poderia deixar de ocorrer numa conversa entre sábios da Terra-média, essa relação não é explícita, muitas das idéias pertinentes não são plenamente desenvolvidas, e de algumas não há senão alusões implícitas. Mas há outros fatores que tornam a leitura interessante. Um deles é que, de ambas as partes, a morte aparece como problema concreto a ser enfrentado, e não como objeto de pura especulação teórica. Andreth é uma mulher idosa que já presenciou a partida de muitos queridos, e sofre intensamente pelo destino de seu povo, sofrimento esse que é agravado pela humilhante convivência com os elfos, sempre jovens, belos e sadios. Finrod não apenas vê com grande pesar o que lhe parece ser a rápida passagem dos membros da espécie humana, que ele tanto ama, mas também teme pela morte final e inevitável, embora distante, que acomete seu próprio povo, e para além da qual não há esperança conhecida. Além disso, tanto homens quanto elfos enfrentam os rigores da batalha contra um poderoso inimigo, de modo que há sempre o risco da morte trágica e violenta. Finalmente, há uma valiosíssima análise psicológica subjacente ao diálogo. O contraste com a maneira de ser dos elfos, tão semelhante à nossa e ao mesmo tempo tão diversa, acaba por revelar ao leitor interessantes traços da natureza humana. Sobre esses traços eu escreverei noutra ocasião, em conexão com outras reflexões. O que convém ressaltar aqui é a genialidade do artifício literário empregado por Tolkien. Aliando-se a isso a beleza própria da linguagem usada tipicamente nas obras de fantasia desse autor, resulta simplesmente uma peça magistral de literatura, tanto pela forma quanto pelo conteúdo, bem como pelo adequado relacionamento entre ambos.

18 de julho de 2007

Não apenas o céu estrelado

Aqui vai, com umas poucas adaptações, o segundo texto que escrevi no segundo semestre de 2005 para atender os requisitos da disciplina Filosofia e ética. Este é sobre a filosofia moral de Immanuel Kant. Considero-a seriamente deficiente em vários pontos importantes, assim como o restante do pensamento kantiano, mas não deixa de ter seus pontos positivos. E, de qualquer forma, serve como informação, em vista da inegável importância de Kant para a filosofia contemporânea.

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Este breve texto se propõe a explicar como Kant define e caracteriza aquilo que ele denomina "imperativo categórico"; isso será feito através de um resumo das duas primeiras seções de sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, com ênfase especial sobre a segunda seção.

A reflexão de Kant tem como ponto de partida a moralidade comum, popular; seu objetivo é analisar de maneira mais atenta os princípios dessa moralidade a fim de identificar seus fundamentos racionais, já que para Kant a moralidade humana baseia-se na razão, e não, como pretendiam Rousseau e Hume, na emoção. O filósofo alemão tomava por concedido que a moral popular era acertada, não tendo qualquer pretensão de modificá-la, e muito menos de substituí-la por outra coisa; ele esperava apenas fundamentá-la racionalmente e, dessa forma, fortalecê-la.

Kant inicia sua reflexão notando que nada existe que seja absolutamente bom, exceto a boa vontade. Tudo o mais depende do uso que disso se faz, não sendo, portanto, necessariamente bom; nessa categoria o filósofo inclui a felicidade, negando, em oposição a Aristóteles, que ela seja um bem em si. Isso se coaduna melhor com outros aspectos da filosofia de Kant, como veremos adiante. Por ora basta dizer que para Kant essa "boa vontade", cujo conteúdo ainda não está determinado, relaciona-se com o dever, que é outro conceito importante em sua filosofia moral. O filósofo sustenta que a boa vontade genuína é aquela motivada unicamente por um senso de obrigação moral, ou seja, de dever, independentemente de quaisquer fatores práticos ou subjetivos envolvidos numa ação. Nenhum ato é virtuoso por si mesmo; o que lhe confere dignidade moral é a natureza de sua intenção. Um ato pode estar de acordo com o dever, mas se seu praticante o executa por interesse ou para satisfazer suas próprias inclinações, e não simplesmente por saber que deve exercê-lo, então não há virtude em exercê-lo.

Conseqüentemente, o valor da ação não está na satisfação que proporciona ao agente ou na obtenção do êxito em alcançar o fim proposto, mas tão somente na obediência a uma máxima, um mandamento. Com base nessa conclusão, Kant define o dever como "a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei". Aqui se vê que a moral kantiana é fundamentada diversamente da aristotélica, pois esta tem em vista o problema prático de como atingir a felicidade, enquanto aquela é fundamentalmente baseada em princípios que necessariamente independem de objetivos práticos.

Porém, dizer apenas que o homem deve respeitar a lei moral não basta para orientar o indivíduo nas suas ações do dia a dia. Essa afirmação de nada vale se não for possível saber quais são os preceitos dessa lei moral, e é a esse problema que Kant se dedica a seguir. A partir daqui, porém, a investigação tem um fim exclusivamente prático, pois o autêntico respeito do homem pela lei deve, por sua própria natureza, ser incondicional, isto é, independente do conteúdo da mesma. Seu fundamento consiste puramente no fato de que é uma lei, expressa na forma de um mandamento. A moral kantiana é formalista, pois nela o conteúdo é secundário em relação à forma.

De forma coerente com seus princípios idealistas e objetivistas, anteriormente defendidos na Crítica da razão pura, Kant afirma que a lei moral deve ser universalmente válida, isto é, aplicar-se igualmente a todos os homens e em todas as situações. Essa é a primeira coisa que se pode saber sobre a lei moral; e daí Kant deduz outra característica da mesma, de enorme importância para o juízo moral prático: ao ponderar sobre se uma dada conduta é boa, o indivíduo pode decidir a questão perguntando a si mesmo se seria desejável, ou mesmo possível, que todos os homens procedessem daquela mesma maneira. Esse critério de universalidade, se constantemente aplicado, permite evitar uma infinidade de atos que violam a lei, tais como o suicídio e a mentira, que, se universalmente aplicados, acabariam por colocar um fim a si mesmos. Kant afirma que esse critério tem a vantagem de não exigir sabedoria teórica para sua aplicação; qualquer ser provido de razão é capaz de aplicá-lo a qualquer situação dada. E o filósofo crê, na verdade, que toda a humanidade de fato aplica esse critério, embora muitas pessoas o façam de maneira mais ou menos inconsciente.

Kant prossegue dizendo que, dada a sua afirmação anterior de que a virtude só depende da intenção, segue-se que a mera observação dos "bons" atos de um homem não permite jamais extrair logicamente a conclusão de que o homem em questão é virtuoso. Não se pode demonstrar que um ato, embora de acordo com o dever, foi de fato praticado pelo simples respeito ao dever. Dessa forma, o dever não é um conceito empírico, ou seja, não tem origem no mundo dos fenômenos, e não se fundamenta nele. Essa idéia concilia-se com o idealismo kantiano, pois aponta para o fato de que o valor do dever não se condiciona à situação concreta da decisão moral, e tampouco à nossa capacidade de atingi-lo.

Para Kant, o que distingue os seres racionais dos demais seres é a sua capacidade de agir conscientemente de acordo com leis, bem como sua capacidade de não seguir essas leis. Nesse sentido a lei moral é evidentemente de natureza diversa das demais leis do universo, embora não seja menos real que elas. E isso é importante porque o homem não é um ser exclusivamente racional, já que seus apetites e interesses concorrem com a razão na tentativa de determinar o curso de suas ações. Dessa forma, a lei moral se apresenta ao homem como um mandamento que exige a subordinação desses aspectos concorrentes. Existe um elemento de coação presente na relação entre a lei moral e o indivíduo humano; por isso o filósofo dá aos preceitos morais o nome de imperativos.

Kant distingue os imperativos em duas categorias: os hipotéticos e os categóricos. Os primeiros dizem respeito a ações dirigidas a um fim prático, e por isso mesmo, em acordo com as concepções já delineadas, não podem ter valor moral. Este advém necessariamente dos imperativos categóricos, que, em princípio, não oferecem nenhum benefício prático para os que lhes obedecem, ou pelo menos não devem ser obedecidos por esse motivo. Se, como já foi exposto, a lei moral caracteriza-se, como todas as outras leis, pela sua universalidade (que é a única coisa concreta que se pode saber a respeito da mesma), segue-se que só existe um imperativo categórico, que Kant apresenta nas seguintes palavras: "Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne em lei universal." Dessa definição geral extraem-se outras três definições logicamente equivalentes, mas dadas sob perspectivas diferentes.

A primeira definição baseia-se nas idéias previamente esboçadas, embora ainda não tenha sido enunciada. Com base na compreensão da lei moral como algo objetivo e universal, Kant define o imperativo categórico da seguinte forma: "Procede como se a máxima de tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal da natureza." Isso significa que, como já foi dito, nossas ações devem se pautar, com base no critério de universalidade, por dois princípios: primeiro, caso passassem a ser compulsórias, elas deveriam produzir um universo isento de contradição. Segundo, a lei natural estabelecida de tal forma deveria ser desejável. Se uma lei universal baseada em uma ação particular minha não puder produzir um universo lógico, ou se eu não desejo que uma lei universal advenha daí, então essa minha ação é moralmente errada.

A segunda definição provém do fato de que a boa vontade, a vontade virtuosa, é motivada por um fim objetivo, a saber, um fim que tem valor universal e que não se baseie em algo externo a si mesmo. E para Kant, que fala de uma perspectiva humanista, apenas o homem, como ser racional, é um fim em si. Se não fosse, diz ele, nada restaria no universo que pudesse preencher esse papel, de forma que o imperativo categórico estaria impedido de existir. De acordo com essa linha de raciocínio, formula-se a segunda definição do imperativo categórico: "Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio." De forma que, se a vida humana é tratada ou manipulada como um meio para obter outra coisa qualquer, então se trata de uma atitude moralmente errada, pois constitui uma inversão de papéis: o fim é tratado como meio e o meio como fim.

A terceira definição é dada pela conjunção das implicações lógicas das duas primeiras: o homem está sujeito à lei moral; mas, sendo um fim em si, e não um meio, ele não pode ser logicamente encarado como mero alvo da lei moral; é necessário postular que o homem é também o autor da mesma. Dessa forma, a vontade humana é vista como inteiramente autônoma, o que responde à questão de saber por qual motivo deve o homem obedecer à lei moral. Se a lei fosse imposta de fora, então apenas o interesse poderia motivar a obediência, e nesse caso não haveria virtude de fato. Kant soluciona esse problema afirmando que o homem deve cumprir a lei porque ele próprio a propôs. Daí decorre a terceira definição do imperativo categórico: "Agir somente segundo uma máxima tal... que a vontade possa, mercê de sua máxima, considerar-se como promulgadora de uma legislação universal."

9 de julho de 2007

Províncias metodológicas

Embora o assunto de que vou tratar neste post não tenha necessariamente alguma relação com o espiritismo, não posso deixar de começar com uma menção a Allan Kardec, por uma simples questão de justiça. Mesmo deixando de lado quaisquer considerações sobre a doutrina espírita considerada em si mesma, eu não tenho muita simpatia intelectual pelo fundador desse movimento. Ainda assim, ele me ensinou algumas coisas interessantes quando, aos quinze anos, li pela primeira vez uma de suas obras, O livro dos espíritos. Já na introdução desse livro, Kardec faz a seguinte advertência, que considero muito acertada:

"Com relação às coisas notórias a opinião dos sábios é, com toda razão, fidedigna, porquanto eles sabem mais e melhor do que o vulgo. Mas no tocante a princípios novos, a coisas desconhecidas, essa opinião quase nunca é mais do que hipotética, por isso que eles não se acham, menos que os outros, sujeitos a preconceitos. Direi mesmo que o sábio tem mais prejuízos que qualquer outro, porque uma propensão natural o leva a subordinar tudo ao ponto de vista donde mais aprofundou os seus conhecimentos: o matemático não vê prova senão numa demonstração algébrica, o químico refere tudo à ação dos elementos, etc. Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis quase sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana. Assim, pois, consultarei, do melhor grado e com a maior confiança, um químico sobre uma questão de análise, um físico sobre a potência elétrica, um mecânico sobre uma força motriz. Hão de eles, porém, permitir-me, sem que isto afete a estima a que lhes dá direito o seu saber especial, que eu não tenha em melhor conta suas opiniões negativas acerca do Espiritismo do que o parecer de um arquiteto sobre uma questão de música."

Cabe observar que, quase um século e meio depois, os métodos de argumentação dos céticos não melhoraram em absolutamente nada. Pode-se discordar à vontade do que dizem os espíritos, e eu mesmo discordo de muitas coisas, mas jamais vi um argumento convincente contra a realidade dos próprios fenômenos espíritas. A melhor tentativa que já encontrei nesse sentido foi a de Carl Sagan em O mundo assombrado pelos demônios, mas o renomado astrônomo não chegou nem a tocar nos argumentos oferecidos por Kardec na introdução que mencionei, pra não falar dos argumentos de outro espiritualista, o poeta W. B. Yeats, ou mesmo dos apresentados no brilhante livro Ortodoxia pelo escritor G. K. Chesterton. Sagan e seus seguidores acabam, assim, justificando o juízo que Kardec faz deles na citação acima, pois seus argumentos consistem exclusivamente de generalizações injustas e impensadas, considerações filosóficas baseadas nas imbecilidades pragmatistas de Charles Peirce e seus discípulos (embora os próprios céticos possam não saber disso) e, como aponta Kardec, nesse reducionismo metodológico que fere claramente o bom senso. Contrastado com qualquer um dos modernos céticos, Allan Kardec emerge como um gênio de incomparável lucidez filosófica.

Esse modo de raciocínio dos nossos céticos estende-se, porém, para muito além da consideração dos fenômenos espíritas. Na verdade, minha intenção inicial ao planejar este post, há alguns dias, era comentar uma reportagem publicada na revista Época em 13 de novembro do ano passado, intitulada A igreja dos novos ateus. Fala sobre três livros publicados quase simultaneamente por três eminentes ateus (o biólogo Richard Dawkins, o filósofo Daniel Dennett e o neurocientista Sam Harris) destinados a combater a religião, que eles consideram a fonte de toda a ignorância, o obscurantismo e a perversidade que existem no mundo. De Sam Harris eu nunca havia ouvido falar. Mas Dawkins e Dennett eu conheço, e posso dizer que são piores até que o próprio Carl Sagan. E quando seus argumentos, que já não são grande coisa, são simplificados por um jornalista brasileiro e colocados naquele estilo extremamente irritante que é o padrão literário das revistas populares do nosso país, a coisa toda se torna indigna de comentário. Por isso, ao reler a reportagem durante esta semana, desisti de escrever a respeito dela o que eu pretendia dizer.

Há outros motivos, porém. Um deles é que a maior parte do espaço é gasta com narrativas perfeitamente irrelevantes, como a do administrador gaúcho que no Natal não comemora o nascimento de Cristo, e sim o de Isaac Newton, ou a da dentista paulista que se acha muito tolerante à religião porque responde "amém" quando uma velhinha de 80 anos lhe diz "Deus te abençoe". O artigo também contém ingenuidades gritantes, como quando diz que a publicação simultânea de todos esses livros é apenas uma feliz coincidência, não havendo qualquer movimento organizado por trás disso, e muito menos um projeto político, quando é óbvio que há. Também constam as bobagens de sempre contra o tal "fundamentalismo religioso", expressão que designa qualquer crítica ao naturalismo filosófico que domina o ambiente acadêmico. Mas o tom geral do artigo é, não digo favorável, mas condescendente no que diz respeito à religião. A melhor parte, porém, está na última página: um texto chamado O provincianismo neo-ateu, de um tal Marcelo Cavallari, de quem eu nunca havia ouvido falar. Em apenas dois terços de página esse sujeito disse praticamente tudo o que havia a ser dito, não restando quase nada que eu pudesse acrescentar. Disse, em resumo: que Dawkins e seus amigos ignoram completamente as questões filosóficas e epistemológicas envolvidas no debate sobre a religião, e mesmo sobre a própria ciência; que parecem um punhado de positivistas ingênuos saídos do século XIX, ignorando tudo o que se passou no mundo desde então; e que o fato de que a ciência não encontra meios de estudar Deus nada mais é que um indício das limitações do método científico.

Por ignorar esse último ponto, os "neo-ateus" são acusados por Cavallari de praticarem aquilo que ele denomina "provincianismo metodológico", que é, como já vimos, a mesma queixa feita por Allan Kardec contra a comunidade científica de seu tempo. Isso não apenas mostra que o materialismo de fato não melhorou nada de lá pra cá, o que justifica plenamente a comparação feita pelo colunista, mas também coloca diante de nós esse problema do método. Num contexto algo diverso, o filósofo Paul Feyerabend escreveu um excelente livro, Contra o método, no qual adverte que o problema da ciência é o fato de ela possuir um método. Considero isso um exagero, pra dizer o mínimo, ainda mais em vista da solução proposta por Feyerabend, que descamba para o puro irracionalismo. Ainda pretendo dedicar um post a esse livro, mas por ora basta dizer que ele não deixa de estar parcialmente certo num ponto: a pretensão de certos cientistas de terem nas mãos o único método válido para o conhecimento efetivo da realidade, desprezando todos os outros, resulta num prejuízo intelectual imensurável: o provincianismo transforma-se num imperialismo, com cada método tentando subjugar ou suplantar os demais.

O risco, porém, é mais sério que isso. Pior que achar que só um método de investigação é capaz de oferecer conhecimento seguro é confundir as limitações do método com a estrutura da própria realidade investigada. Nossos materialistas incorrem o tempo todo nesse erro, supondo que o fato de que o método científico só pode investigar a matéria deve-se ao fato de que a matéria é tudo o que existe para se investigar. Mas os praticantes das ciências naturais e experimentais não são de modo algum os únicos atingidos por esse mal. Boa parte das bobagens em voga hoje em dia possui sua origem num equívoco desse tipo. É o caso, por exemplo, do relativismo cultural, que nasceu de uma simples necessidade metodológica da antropologia: a fim de preservar a objetividade científica desse campo de estudos, era necessário que o antropólogo se restringisse a colher dados sobre a cultura do povo analisado, abstendo-se, nesse ato, de incluir juízos morais a respeito da mesma. Depois de um tempo, porém, os próprios antropólogos parecem ter se esquecido de que essa era apenas uma norma metodológica, e passaram a alardear que, como uma questão de fato, não se pode falar em superioridade moral de uma cultura sobre outra. Também é o caso da psicologia comportamental ou behaviorista, que, limitando-se a investigar a mente humana em seu aspecto puramente físico, como se esta fosse apenas um computador muito complexo, acabou por concluir que tudo o que pensamos haver nela de imaterial na verdade não existe.

Conclusões desse tipo são evidentemente enganosas. É como se um astrônomo desenvolvesse métodos para investigar os corpos celestes e depois, esquecendo-se de que seu objetivo inicial era somente esse, passasse a apontar seu telescópio para cima à procura de peixes e, não os encontrando, concluísse que tais seres não existem. O que falta às pessoas que raciocinam dessa forma é a simples percepção de que nenhum método de investigação racional, existente ou por inventar, pode ter a pretensão de abarcar o real em sua totalidade. Pois desenvolver um método consiste justamente em escolher algum dentre os inúmeros aspectos que a realidade nos oferece e separá-lo dos demais a fim de facilitar a compreensão por parte do investigador. Essa separação, porém, não é um dado da realidade, e sim uma idealização abstrata realizada de maneira intencional pela mente do pesquisador. Conseqüentemente, este deve ser cuidadoso ao extrapolar suas conclusões, pois estas não podem logicamente ser mais abrangentes que os métodos que as produziram, e estes, pela sua própria natureza, não podem ser senão descrições parciais da realidade.

Não posso deixar de dizer que fiquei algo preocupado ao descobrir, há poucos dias, que nem um gênio como Platão escapou completamente desse erro. Percebi isso lendo algumas transcrições de palestras sobre Aristóteles proferidas pelo filósofo Olavo de Carvalho, que é provavelmente o maior especialista em filosofia aristotélica do Brasil, e um dos maiores do mundo atual. Em suas aulas Olavo chama a atenção justamente para esse fato: Platão formulou sua doutrina das idéias apenas por ter levado tão a sério o método socrático de concentrar a atenção nas essências das coisas, desprezando seus acidentes (estou usando terminologia aristotélica, mas isso pouco importa), que acabou separando aquelas do mundo sensível, conferindo-lhes existência independente e tratando estes como pouco mais que meras aparências ilusórias. Quanto a esse aspecto, a grande contribuição de Aristóteles foi a conciliação da unidade do real com a diversidade dos meios de apreendê-lo. Eis um problema filosófico sério, que os intelectuais modernos, cujas inteligências somadas não parecem chegar perto da de Platão, não têm conseguido resolver, pois freqüentemente não são capazes sequer de perceber a existência do problema. Parece-me claro que Kardec estava certo ao afirmar que isso é apenas uma conseqüência da fraqueza humana.

8 de julho de 2007

Ao fim pelo meio

Durante esta semana encontrei numa pasta quase esquecida do meu computador três textos que eu mesmo produzi há algum tempo, e resolvi publicá-los aqui no blog, uma vez feitas as devidas adaptações. Explico: a pasta em questão contém todos os trabalhos, relatórios, figuras, apostilas, materiais de estudo, códigos de programação (na boa e velha linguagem Fortran), documentos e outras coisas que fui produzindo e reunindo ao longo do curso de graduação, ou pelo menos desde que comprei o computador. Depois que concluí a faculdade, naturalmente, esse material todo só poderia mesmo cair no esquecimento até que eu decidisse abrir a pasta para lembrar do que havia dentro, como de fato aconteceu há poucos dias.

Os textos em questão foram escritos entre outubro e dezembro de 2005 para avaliação na disciplina Filosofia e ética, a segunda das três disciplinas do Departamento de Filosofia que cursei para fugir um pouco das ciências exatas. Antes de publicar os textos, porém, devo advertir que minha nota final nessa disciplina foi 9, o que certamente significa que deixei de aprender no mínimo 10% do que devia. Digo "no mínimo" porque provavelmente foi muito mais. Infelizmente não levei o curso com a seriedade que seu tema merecia, em vista do fato de que a professora, apesar de dar ótimas aulas (embora eu tenha estado ausente em boa parte delas), facilitou consideravelmente as coisas no que diz respeito à avaliação; isso se nota, por exemplo, no fato de que ela nos autorizou a redigir em casa os textos exigidos, e é por isso mesmo que os tenho no computador. De modo geral, eu não fui um aluno relaxado na faculdade, mas, tendo naquele semestre disciplinas muito mais preocupantes, vi-me forçado a dedicar mais tempo a elas e reduzir ao mínimo necessário o estudo das que ofereciam pouco ou nenhum risco de reprovação. Essa é uma situação corriqueira da vida universitária, e não houve um semestre em que eu não tenha precisado fazer esse tipo de coisa. Digo tudo isso não apenas para desabafar por não ter podido então estudar um assunto que se me afigurava muito interessante (como, aliás, até hoje), mas também para advertir quanto a prováveis erros que os textos devem conter, em vista do fato de que faltei a várias aulas, li correndo os textos recomendados pela professora e não empreendi desde então nenhum estudo mais aprofundado que me permita identificar e corrigir esses erros agora.

Publico, portanto, os textos com algumas adaptações e expansões, destinadas apenas a corrigir certas imprecisões lingüísticas e tornar mais claros certos conceitos apresentados, além de tornar os textos esteticamente um pouco mais apresentáveis. Cada um deles responde a uma questão acerca da concepção de moralidade defendida por um dos três filósofos estudados, sem, no entanto, ter a pretensão ser um resumo da filosofia moral do pensador em questão, ou mesmo do texto em que a mesma é exposta. A professora foi bastante perspicaz ao elaborar perguntas específicas que, embora não exigissem um resumo da obra, requeriam um bom entendimento geral da mesma para serem corretamente respondidas. O primeiro filósofo estudado foi Aristóteles, que delineia suas idéias sobre moral no célebre tratado Ética a Nicômaco.

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"A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática." (Ética a Nicômaco, Livro II, capítulo 6)

Este breve texto se propõe a esclarecer a definição de "virtude" oferecida por Aristóteles, conforme a citação acima, através da explanação dos termos usados, de acordo com as definições e os esclarecimentos meticulosamente dados pelo próprio Aristóteles em sua valiosa obra Ética a Nicômaco.

Em primeiro lugar é necessário esclarecer que, para Aristóteles, a virtude genuína se manifesta na vida do indivíduo através de ações justas e corretas efetuadas por ele. Isto é, pessoas virtuosas necessariamente praticam atos virtuosos. Não há espaço para uma concepção meramente teórica da virtude, isto é, que não se traduza numa conduta correspondente e objetivamente verificável. Além disso, cumpre ressaltar que a persistência em praticar esses atos é não apenas um indicador da virtude do agente, mas também é requisito para se atingir e manter o caráter virtuoso. O hábito exerce um papel fundamental tanto na aquisição quanto na posse plena desse caráter, de modo que não há, na verdade, uma dicotomia rígida entre os meios e os fins (de maneira geral, aliás, não encontramos dicotomias rígidas no pensamento de Aristóteles, e é esse um dos fatores importantes que o distinguem de seu mestre Platão). Apesar disso, porém, a virtude verdadeira não se reduz à pura prática de ações exteriores. O homem bom não é aquele que apenas faz o bem, e sim o que se compraz em fazê-lo. Boas ações e bons pensamentos são, para ele, uma fonte de felicidade. Inversamente, a prática do mal lhe traz infelicidade, isto é, sua consciência moral está a tal ponto desenvolvida que seus deslizes, mesmo raros, causam-lhe pesar e desconforto. É a esse modo interior de ser que Aristóteles se refere quando diz que a virtude deve ser vista primordialmente como uma "disposição de caráter".

O Filósofo considera que a felicidade é o sumo bem, pois é o único bem que almejamos como um fim em si, e não como um meio para se conseguir outra coisa. Ao contrário, todas as demais coisas que buscamos são, no fim das contas, apenas meios que visam a esse fim. Mas a felicidade só pode ser atingida através de meios compatíveis com a constituição humana, ou seja, em conformidade com a nossa natureza. Esses meios, portanto, incluem o uso adequado das faculdades racionais. A razão do homem pode e deve guiá-lo em suas escolhas. Aristóteles nos diz que o homem sábio e virtuoso é aquele que sabe tomar as decisões corretas tendo em vista o fim último. As escolhas sábias requerem um correto senso de prioridade, e são sempre orientadas para a determinação dos meios, e não dos fins. Pois o homem precisa, antes de qualquer coisa, escolher uma meta, para então, dentro de suas possibilidades concretas, fazer escolhas que o levem até ela. Sendo assim, as escolhas só podem ser guiadas pela razão se houver a definição prévia de um fim a ser atingido, o qual é determinado não pela própria razão, mas pelo desejo.

Assim, virtude consiste tanto em ter em vista os fins adequados quanto em saber atingi-los pela escolha racionalmente correta e eficiente dos meios, na medida em que as condições externas o permitam. Isso significa que o termo "felicidade", no sentido estrito, não é aplicável a seres desprovidos de razão. A felicidade não se confunde com o mero prazer e o bem estar, buscados instintivamente pelos animais, sendo antes um fim mais elevado, desejado apenas pelo homem e acessível através das escolhas certas feitas por ele. A escolha é necessariamente um ato voluntário, uma vez que envolve deliberação, isto é, ponderação seguida de decisão consciente, o que é impossível em ações involuntárias. Entretanto, nem toda ação voluntária é uma escolha, pois um ato pode ser voluntário sem ter sido deliberado. Uma ação voluntária impensada, isto é, não guiada por uma deliberação prévia, dificilmente contribuirá para a aproximação do fim último.

Relacionada de perto com a questão das escolhas corretas está a disposição que Aristóteles chama de "sabedoria prática". Esta pode ser definida como a capacidade que um homem tem de fazer escolhas acertadas tendo em vista o seu próprio bem estar, dadas as condições em que se encontra. A sabedoria prática requer a capacidade de avaliar bem a situação concreta e tomar, dessa forma, decisões realistas. Aristóteles não ignora que o homem está, na sua vida prática, sujeito a uma série de contingências que independem de sua vontade e de seu poder, e essa relativa fragilidade humana diante das circunstâncias é um fator que não pode ser desconsiderado por uma filosofia moral, pois esta não terá valor algum se não puder orientar o indivíduo na sua conduta prática. Diante disso tudo, a sabedoria prática é a aptidão intelectual necessária ao progresso na busca da virtude e, portanto, da felicidade; mas, considerada em si mesma, não possui qualquer componente moral. Embora seja de natureza puramente intelectual, porém, é inteiramente independente de qualquer conhecimento técnico ou científico, não se vinculando a cultura, erudição ou aptidão artística.

O Filósofo concebe a virtude como consistindo essencialmente em um equilíbrio entre vícios opostos. É a isso que ele se refere como "mediania". O homem é feito de diversos componentes opostos entre si, e o excesso de qualquer deles, o predomínio de alguns sobre os demais, é, para Aristóteles, prejudicial à natureza humana, e conseqüentemente afasta o homem da virtude. Assim, por exemplo, a coragem é o justo meio entre a covardia e o destemor insensato, que são vícios opostos entre si. Da mesma forma, muitas outras virtudes e vícios podem ser identificadas em casos análogos, e é dever do sábio buscar sempre essa mediania virtuosa. Não se trata, porém, de um conceito rigidamente matemático, pois não é possível fazer abstração dos elementos concretos da realidade humana sem incorrer justamente no erro que Aristóteles denunciava em Platão. É necessário levar em consideração as particularidades das circunstâncias e dos indivíduos envolvidos no contexto de uma determinada escolha. O homem deve ter em conta sua situação e seus interesses para, no momento oportuno, reprimir ou dar vazão às suas paixões em conformidade com eles, mantendo-as sob controle de sua razão. O sábio é aquele que tem domínio completo de si, governando seus instintos e não sendo governado por eles. Só a conquista desse poder capacita o homem a atingir a felicidade, e isso só é possível pela perseguição do equilíbrio. A filosofia moral de Aristóteles é, assim, sumamente sensata: ele sabia que só se pode atingir o fim passando pelo meio.

3 de julho de 2007

A mais grandiosa das aventuras

Poucos dias depois de eu ter publicado minha breve investida contra o determinismo, recebi um e-mail de um amigo pedindo-me que lhe explicasse exatamente um daqueles pontos que, naquele texto, eu não quis discutir. Em vista de eu ter me recusado veementemente a abrir mão da minha experiência concreta em favor de alguma outra coisa, ele quer saber como se pode conciliar a liberdade humana com a onisciência e onipotência de Deus, isto é, como eu espero afirmar a absoluta soberania divina sem incorrer naquilo que, muito apropriadamente, ele chama de "determinismo teológico". Visto que eu pretendia falar sobre esse assunto neste blog mais cedo ou mais tarde, e visto também que eu não ia ter tempo nos próximos dias para redigir dois textos (uma resposta ao meu amigo e um post neste blog), decidi escrever hoje sobre esse tema aqui. Mas já que vou publicar esse texto, peço licença para fazer um trabalho um pouco mais completo, discorrendo também sobre os pontos pertinentes que meu amigo já percebeu por si mesmo, e não apenas aquele no qual ele empacou.

Antes de entrar no assunto propriamente dito, convém esclarecer em poucas palavras qual é exatamente o conceito sobre Deus que o cristianismo advoga como correto. Pode parecer surpreendente, mas existe entre os inimigos da fé cristã uma ignorância tão grande acerca dessa questão tão básica que isso acaba sendo necessário. Richard Dawkins, por exemplo, que é um dos ateus militantes mais famosos do mundo, e que boa parte dos meus conhecidos ateus considera um sujeito intelectualmente muito respeitável, acaba de publicar um livro no qual mostra que nunca ouviu falar naquilo que a teologia cristã chama "eternidade", e que Boécio definiu como "a posse simultânea de todos os estados do ser". Um milênio e meio não foi tempo suficiente para que essa idéia simples, na qual se baseia toda a reflexão filosófica posterior dentro do cristianismo sobre a natureza de Deus, chegasse aos ouvidos do famoso biólogo de Oxford. Com um conceito tão pueril sobre a divindade, pode-se facilmente perceber que a posição teísta não teria como fugir ao determinismo. Deus seria como um homem que pondera e decide tomar determinada atitude daqui a algum tempo. Mas ele é um homem dotado de imutabilidade, de forma que ele não abandona o plano antes que chegue o momento de executá-lo, e onipotência, de modo que causas externas não impedem sua concretização. O resultado disso é que, assim como no determinismo laplaciano clássico, o estado do universo em qualquer instante dado é função de seus estados prévios; no caso, função do que Deus decidiu, em algum momento do passado, que viria a acontecer.

Entretanto, como eu já disse, isso não corresponde ao que o cristianismo tem ensinado acerca de Deus ao longo de todos esses séculos. Pois nessa doutrina Deus não é alguém que esteve andando por aí durante muito tempo e de repente resolveu criar o mundo, e sim alguém que criou tudo o que existe, inclusive o tempo e o espaço, e por isso mesmo não está de modo algum limitado por essas entidades. A onipresença de Deus não significa que ele ocupa um volume infinito, e sim que para ele não existe "ali" ou "lá", mas apenas "aqui". Da mesma forma, a eternidade de Deus não significa que ele existe há um tempo infinito e continuará existindo perpetuamente, e sim que para ele não existe passado e futuro, pois para ele tudo é presente. Diante disso, o mínimo que pode ser dito com segurança é que a onisciência divina não é logicamente incompatível com a liberdade humana, visto que nada nesse quadro exige uma determinação unívoca do estado do universo em função de estados prévios. E de fato não é através de cálculos matemáticos determinísticos que Deus conhece o futuro. Deus conhece o futuro justamente porque para ele não é futuro, porque ele o vê se desenrolando tanto quanto vê aquilo que para nós são o passado e o presente; para Deus tudo está presente, pois ele presencia igualmente todos os eventos.

Naturalmente, ninguém dirá que, ao executarmos um ato qualquer, nossa liberdade é violada por Deus ou por qualquer outra pessoa pelo simples fato de que o ato é presenciado por essa pessoa. Uma coisa não tem relação lógica alguma com a outra. Nenhuma objeção ao livre arbítrio humano com base na onisciência divina (ou vice-versa) pode ser admitida com base em considerações sobre o tempo. Pois em vista da eternidade de Deus, conforme explicada acima, utilizar expressões como "o futuro está decidido" ou "Deus sabe o que irá acontecer" é incorrer no mais infantil antropomorfismo. A palavra "já" é a causa de toda a confusão, pois ela remete a algum momento do passado, ou então nada significa. E a verdade é que não há nenhum momento do passado ao qual possa ser atribuída a decisão divina de que a situação presente (ou futura) deveria ser tal como é (ou será). Utilizar descuidadamente palavras que denotam tempo em referência a eventos ocorridos fora do tempo só pode mesmo resultar em confusão. O mais importante, porém, é constatar que, se palavras como "já" ou "previamente" forem evitadas no contexto dessa discussão, torna-se impossível a simples formulação do problema de uma maneira que faça sentido.

Mas se eu parar por aqui, como bem percebeu o meu amigo, poderíamos ficar com a impressão de que Deus é um sujeito que apenas observa passivamente tudo o que se passa, como se não houvesse da parte dele qualquer tentativa de manter o controle da situação e dirigir os rumos da história para onde lhe apraz. Mas o Deus cristão é justamente assim: ele exerce ativamente seu poder na sua criação de modo que ela, no todo e em cada uma de suas partes, atinja os fins estabelecidos por sua soberana decisão, e nenhum pardal caia se não for essa a sua vontade. Ora, mas se a situação é essa, então como ainda se pode falar em liberdade humana? Pois se é impossível pegar Deus de surpresa, se tudo o que fazemos ou deixamos de fazer encaixa-se com perfeição em seus inescrutáveis desígnios, em que sentido se pode dizer que nossos atos são verdadeiramente livres? Parece que, mesmo deixando de lado a questão cronológica, que é mera infantilidade, resta ainda um problema lógico que merece consideração mais atenta.

O pressuposto implícito nessa objeção é que um ato só pode ser verdadeiramente livre se não estiver encaixado nos planos de ninguém, a não ser nos do próprio autor da ação. Mas por que deveríamos aceitar essa maneira de caracterizar o conceito de liberdade? Desde que um ser seja capaz de optar verdadeiramente entre duas ou mais condutas, isto é, sem qualquer coerção externa insuperável, a questão de saber se o ato efetivamente realizado está ou não de acordo com os desígnios de outra pessoa é irrelevante do ponto de vista do próprio ato, pois em qualquer caso ele atende os requisitos que o caracterizam como livre. O ser superior em questão pode manter o controle da situação atropelando as vontades livres dos agentes envolvidos ou integrando-as harmonicamente nos acontecimentos. Não posso ver qualquer contradição lógica na segunda alternativa. Isso talvez pareça a alguns como apenas uma abstração filosófica, mas eu creio poder ilustrá-la com um exemplo bastante concreto e palpável: o RPG ("Roleplaying game", ou jogo de representação de papéis). Antes de mudar de parágrafo, farei um breve resumo dos pontos essenciais desse jogo para quem porventura não o conheça. Os jogadores criam personagens e os caracterizam da melhor maneira possível, conforme bem lhes parecer, de acordo com certas regras (cujo objetivo principal é apenas evitar que os personagens sejam super-homens). Depois vem o jogo em si, no qual cada jogador deve, mantendo-se fiel ao personagem que criou, tomar decisões frente às situações descritas pelo narrador. Este é apenas um jogador cuja função não é interpretar um personagem, e sim criar o ambiente e conduzir a história em que os personagens existem e agem.

Evidentemente, um narrador que conheça muito bem a índole dos jogadores e dos personagens pode planejar de antemão os rumos de uma aventura e conduzi-la em direção a esse fim sem grandes dificuldades ou imprevistos. Não que isso na prática seja fácil, mas é, em princípio, possível. O ponto a ser ressaltado, porém, é que em nenhum momento isso implicará em violação da liberdade dos jogadores. Um narrador pode até tomar uma atitude tão drástica quanto obrigar um profeta a ir até Nínive no ventre de um peixe, mas se o jogador disser "agora meu personagem vai dar um soco nesse garçom", ele não poderá responder "não, ele não está com vontade de fazer isso". Essa é a diferença entre interferir efetivamente na liberdade individual e apenas restringir severamente o campo de possibilidades de ação num determinado contexto. Essa restrição em maior ou menor grau é, como expliquei no outro post, um aspecto fundamental e incontornável da condição humana neste mundo. Uma vez compreendido esse ponto, é fácil perceber que se um narrador de RPG é onisciente e onipotente, e conhece perfeitamente bem seus jogadores (muito melhor, portanto, que eles próprios), não vejo que dificuldade ele pode ter em criar situações e conduzi-las com perfeição rumo a um resultado desejado sem suprimir a liberdade de ninguém. Não é que esta não exista, e sim que ela se encaixa nos desígnios do narrador e faz parte deles. O RPG tem justamente o objetivo de simular a vastidão das possibilidades de ação que possuímos em nossa vida real, e é por isso mesmo que, guardadas as devidas proporções, a vida é livre como uma aventura de RPG. É, aliás, a mais grandiosa de todas as aventuras, e isso justamente pelos méritos de seu Narrador. O jogo tenta imitá-la, mas não pode chegar aos pés dela.

Não devo encerrar este texto sem prestar um breve esclarecimento. Temo que alguém possa tomar essas minhas palavras como um posicionamento sobre a doutrina da predestinação, que já gerou incontáveis debates tanto dentro do protestantismo quanto no catolicismo. A verdade, porém, é que este post não chega nem perto de entrar nessa complicada questão. Pelo contrário, a defesa da liberdade humana contra toda forma de determinismo é uma luta empreendida por todo o cristianismo, monergista ou sinergista, católico ou protestante, calvinista ou arminiano, correto ou equivocado, pois essa liberdade é o fundamento lógico da responsabilidade moral, e portanto da própria possibilidade do pecado. A divergência real e essencial entre as concepções monergista e sinergista não reside nesse ponto, e sim em questões sobre a extensão e profundidade da depravação humana e sobre os papéis desempenhados respectivamente por Deus e pelo indivíduo na salvação deste último. Mas todas as respostas, boas ou ruins, apresentadas dentro da teologia cristã pressupõem o livre arbítrio humano, ao menos no sentido em que essa expressão foi empregada por mim nesta análise.