20 de maio de 2013

Deveres sem pessoas - parte 7

Esta é uma série de sobre o artigo A autonomia da ética, em que o filósofo ateu americano David O. Brink busca livrar a objetividade da moral de um fundamento religioso. Desde a terceira parte, venho tratando especificamente de seu esforço de negar ao "teísmo" um papel metafísico na moralidade. Essa parte, que provavelmente é a mais importante, terminará hoje. Encerrei a postagem anterior apontando um problema em sua alegação de que as leis da lógica estão acima de Deus. Contudo, eu disse que eram dois problemas, e só expus o primeiro. Antes de abordar o segundo, devo fazer um esclarecimento. No parágrafo anterior, mostrei apenas que Brink não tem base racional para afirmar o que afirma. Não pretendo, porém, negar peremptoriamente que as leis da lógica e da aritmética sejam "verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis". Talvez de fato sejam. Algumas leis de Deus poderiam ser diferentes do que são; talvez todas pudessem, e talvez não. Qualquer que seja o caso, elas não são arbitrárias, mas revelam algo sobre a natureza de Deus, de modo analógico. Tentarei ilustrar o que quero dizer, sem muito rigor, começando por algo que C. S. Lewis disse no livro Cristianismo puro e simples:

"Tudo o que Deus fez tem alguma semelhança com ele. O espaço é como ele na imensidão; não que a grandeza do espaço seja do mesmo tipo que a grandeza de Deus, mas é um tipo de símbolo dela, ou uma tradução dela em termos não-espirituais. A matéria é como Deus por ter energia: embora, uma vez mais, é claro, a energia física seja diferente do poder de Deus. O mundo vegetal é como ele porque é vivo, e ele é o 'Deus vivo'. Mas a vida, nesse sentido biológico, não é a mesma vida que há em Deus; é apenas um tipo, símbolo ou sombra dela. Quando passamos aos animais, encontramos outros tipos de semelhança além da vida biológica. A intensa atividade e fertilidade dos insetos, por exemplo, tem uma vaga semelhança com a atividade e a criatividade incessantes de Deus."

As comparações continuam, mas interromperei a citação aqui porque creio que a ideia já ficou clara. Seguindo pelo mesmo caminho, acredito que as regularidades do mundo físico e a harmonia da natureza revelam algo sobre o caráter ordeiro, confiável e imutável do Criador. A beleza das coisas criadas aponta para a criatividade e o bom gosto de Deus. Os inúmeros prazeres sadios à nossa disposição revelam algo sobre o amor e a generosidade de Deus. A abundância do sofrimento revela a ira justa de Deus contra a depravação e a rebeldia do homem. E as leis da lógica revelam algo sobre a coerência e a inteligência divinas. Nesse sentido, nada em toda a criação é arbitrário.

Não obstante, talvez Deus pudesse revelar exatamente os mesmos atributos e atitudes estabelecendo leis diferentes das que efetivamente escolheu. É claro que, na medida em que as verdades reveladas sobre Deus são as mesmas, existe um fundo comum a todas as leis possíveis. Mas a forma concreta dessas leis talvez pudesse ser diferente do que é. No caso em questão, talvez outros princípios lógicos pudessem revelar igualmente bem a coerência e a inteligência de Deus. Mas também pode ser que isso não seja verdade, e que ao menos algumas das leis que conhecemos sejam as melhores, ou mesmo as únicas compatíveis com o que Deus pretendia revelar através delas. Nesse caso, Brink está correto ao aludir a elas como "verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis". Mas - e aqui está o segundo problema - nem por isso estaria justificado em dizer que "então já reconhecemos que algumas verdades necessárias estão para lá do controlo de Deus". Com isso ele quer dizer que essas leis estão acima de Deus, não sendo, portanto, leis criadas por ele para revelar seu caráter e seus atributos. Ainda que as leis da lógica sejam as únicas que Deus poderia usar para revelar sua inteligência, coerência e racionalidade, elas continuariam sendo criaturas, feitas por sua livre iniciativa para esse fim.

Uma vez mais, Brink não tem argumento algum para sustentar o que sustenta. Na verdade, ele trata do assunto com considerável superficialidade, e até, ouso dizer, com amadorismo. Ele visivelmente não está bem informado sobre os desenvolvimentos teológico-filosóficos do conceito de lei dentro do cristianismo. Não digo isso com o propósito de espezinhá-lo, e sim porque esse fato me parece um (ou mais um) indício relevante de seu pouco interesse real pela religião em geral, e pelo cristianismo em particular, e essa postura inevitavelmente compromete a qualidade de sua argumentação. Com isso pretendo não só apontar um erro argumentativo, mas também apontar que esse erro brota de uma disposição mental pouco saudável. Mas estou satisfeito porque o equívoco em questão me deu oportunidade de escrever sobre o assunto pela primeira vez.

Devo apenas acrescentar, antes de passar adiante, que não considero "minhas" as ideias que acabo de expor, no sentido de alguma pretensa originalidade. Ao mesmo tempo, porém, não tenho a quem atribuí-las sem correr certo risco. A inspiração de meu argumento, muito mais que em Lewis, se encontra no filósofo neocalvinista holandês Herman Dooyeweerd. Acredito que é pelas razões que acabo de expor que ele não gostava de falar da lógica (ou de qualquer outro conjunto de leis) como "atributos" de Deus, como fazia Gordon Clark. (Transposto para o terreno da lei moral, a ideia deste último guardaria certo parentesco com a de Norman Kretzmann, que Brink menciona em [n9]. Isso, naturalmente, se Brink o tiver entendido direito, coisa de que ele mesmo não tem certeza, e que é honesto e humilde o suficiente para comunicar aos seus leitores.) Ao contrário, o holandês preferia descrevê-las como "absolutos criados". Passei a gostar dessa expressão no momento em que entendi o que significa - e isso, convém dizer, não foi muito fácil para alguém de índole racionalista como eu.

Porém, a verdade é que não conheço o pensamento de Dooyeweerd em profundidade. É nisso que reside o perigo a que me referi. De qualquer forma, creio que ele endossaria pelo menos em parte o que acabo de defender, já que uma de suas ênfases mais marcantes (e mais mal compreendidas) é a de que as leis estão abaixo de Deus e são parte de sua criação. Para mim, a expressão "absolutos criados" preserva magistralmente a soberania de Deus e o caráter criatural de todas as leis que regem o universo, ao mesmo tempo em que não deixa lugar a uma acusação séria de arbitrariedade, na medida em que as leis, assim como o restante da criação, destinam-se precisamente a revelar o caráter de Deus, que é uma coisa muito definida. Mas aqui posso já estar me afastando de Dooyeweerd rumo às ênfases de Cornelius Van Til.

Diante do exposto, não é difícil notar o quanto o Deus do cristianismo é diferente dos deuses pagãos em que Platão pensava ao escrever o Eutífron - e, por conseguinte, diferente do conceito que o Dr. Brink constrói sobre o Deus do "teísmo", que é, no fim das contas, um deus politeísta que conseguiu eliminar a concorrência, um sujeito que, exceto por seu tamanho, não tem nada que o distinga de todos os demais seres pessoais do universo. Mesmo de um ponto de vista estritamente metafísico, um deus do panteão grego (ou qualquer outro) dotado de poder e inteligência infinitos ainda está muito, muito longe de ser o Deus do cristianismo. Entretanto, esse conceito um tanto infantil de Deus é o único abordado no artigo, e se manifesta em inúmeras partes dele, a tal ponto que eu gastaria um espaço considerável no simples esforço de listar essas manifestações. Mas cito ao menos um exemplo, o da conclusão da seção, em [6.1]:

"O subjectivismo ético é uma maneira de negar a objectividade ética. Afirma que o que é bom ou mau e correcto ou incorrecto depende das crenças e atitudes morais de quem avalia as coisas. [...] Mas o voluntarismo implica que as atitudes de Deus desempenham um papel metafísico, e não apenas epistémico, na moralidade; as suas atitudes fazem as coisas boas ou correctas. Isto é uma forma de subjectivismo em ética. Mas então a suposição de que a moralidade exige uma fundação religiosa, como o voluntarismo insiste, ameaça a objectividade da moralidade, em vez de a vindicar."

É isso o que o autor entende por "autonomia da ética". Seu argumento só faz algum sentido se for presumido que Deus, se existir, é uma pessoa como outra qualquer. Há um problema nisso, que tentarei explicar. Todas as noites eu prendo meus dois gatos em um cômodo do nosso apartamento, contra a vontade deles. Até hoje, ninguém foi insensato o suficiente para me dizer que isso é imoral. Mas todos pensariam diferente se eu fizesse o mesmo com hóspedes humanos. A diferença está no que Brink, em [4.4], chama de "propriedades naturais": não posso aplicar as mesmas regras morais indistintamente em meu lidar com gatos e homens, porque são dois tipos diferentes de seres, com os quais devo me relacionar de modo correspondentemente diferente. Mesmo entre seres de mesmo status ontológico essas diferenças se verificam, em virtude de diferentes funções. Um juiz pode sentenciar um criminoso a dez anos de prisão, e um carcereiro pode mantê-lo preso durante esse período em um local designado para esse fim. Mas eu, que não sou juiz nem carcereiro, não posso condenar alguém e mantê-lo em cativeiro, por pior criminoso que esse alguém seja. E tudo isso apesar do fato de que o juiz, o carcereiro, o criminoso e eu somos igualmente seres humanos. Da mesma forma, um professor tem autoridade para repreender um aluno que esteja tumultuando a aula e, no limite, tem o poder (ou até o dever) de colocar esse aluno para fora da sala. Mas o aluno não pode expulsar o professor, por mais que este esteja atrapalhando seu aprendizado.

Há muita cegueira (e, às vezes, hipocrisia) no discurso moderno contra a autoridade, mas não pretendo me delongar nesse ponto. Desejo apenas chamar a atenção para um fato deveras revelador: não falta ao autor uma percepção do que acabo de dizer. Ele defende expressamente em [4.4] que "as propriedades morais das acções, pessoas, instituições e situações dependem de um modo sistemático das suas propriedades naturais - por exemplo, de propriedades biológicas, psicológicas, legais e sociais". Não obstante, ele não se permite sequer levantar a conjectura de que o papel de Deus como Criador e Autor de tudo o que temos, a começar por nossa própria existência, possa ter alguma implicação moral relevante. É assim, por exemplo, que Brink sugere alguma imoralidade divina ao ordenar o sacrifício de Isaque em [n7]. O mínimo que posso dizer (e, por enquanto, ficarei nesse mínimo) é que não é óbvio que o Criador tenha as mesmas obrigações e prerrogativas morais que suas criaturas. No entanto, fico com a impressão de que, para o Dr. Brink, embora as diferenças entre um gato e seu dono, entre um cidadão comum e um juiz ou carcereiro e entre um professor e um aluno sejam importantíssimas, a diferença infinita entre o Criador e suas criaturas feitas ex nihilo não tem importância alguma, não é uma "propriedade natural" relevante, não merece discussão, nem sequer menção. Parece jamais ocorrer ao Dr. Brink que o homem possa ter algum dever de obediência, ou mesmo de simples gratidão, em relação a esse Deus - um dever que, por motivos óbvios, Deus não teria em relação ao homem.

É no mesmo espírito que Brink afirma, em [n8], que o vilão voluntarista identifica "a valência moral de algo com a sua disposição para provocar aprovação num avaliador apropriado", e assim "está comprometido com uma forma de particularismo moral", o que é visto como "uma razão complementar para rejeitar o voluntarismo". Assim, Deus é considerado como não mais que um candidato a "avaliador apropriado", em pé de igualdade com qualquer outro que porventura venha a se apresentar. Brink nunca entendeu seriamente o conceito bíblico de criação em geral, e de criação do homem à imagem e semelhança de Deus em particular. Se tivesse entendido a primeira parte, veria que é absurdo igualar o conhecimento do autor das leis ao daqueles para os quais ela foi criada. E, entendendo o segundo, veria que o caráter de Deus é normativo para o homem ("Sede santos, porque eu sou santo") em virtude dessa mesma imagem e semelhança, que nos é constitutiva. Desobedecer a Deus é, entre outras coisas, ir contra a norma de nossa natureza.

É nada menos que lamentável que toda essa cegueira apareça em um artigo que trata dos fundamentos da rejeição da ética "teísta". Mesmo de um ponto de vista estritamente intelectual, a argumentação de Brink deixa muito a desejar, a despeito de sua formação acadêmica e de sua inteligência e sensatez claramente perceptíveis em vários pontos. E não poderia ser diferente, pois Brink ignora praticamente tudo sobre o conteúdo, os fundamentos, as motivações e as implicações da ideia que combate.

E isso me leva à última coisa que devo dizer antes de passar à próxima seção: diante do exposto, só posso considerar presunçosa a atitude do autor ao dizer, como diz em [5.3], que "o naturalismo tanto parece a melhor aposta para os ateístas e agnósticos como para os teístas". Essa generalização só se justificaria na medida em que o autor entendesse de fato o que é o "teísmo" e quais são as motivações de seus adeptos. Demonstrei abundantemente até aqui que Brink não alcançou tal entendimento, e sequer chegou perto dele. É verdade que há teísmos para todos os gostos, e alguma vertente deve se enquadrar bem no retrato pintado por ele. Mas isso é tanto um atenuante quanto um agravante: se o que Brink diz só se aplica a determinados grupos teístas, ele não lidou de modo algum com "o" teísmo. Aliás, é por isso mesmo que venho colocando o termo "teísmo" entre aspas ao longo de toda esta série: ele diz muito pouco, a tal ponto que não tenho qualquer interesse em defendê-lo. Pensando lidar com características universais, comuns a todos os teísmos, o autor fez apenas uma caricatura barata da maioria deles. E, pelo menos no caso do "teísmo" que defendo, deixou de fora com muita satisfação quase tudo o que há de importante.

É também por isso que considero presunçosa a pretensão do autor de falar em nome do "teísmo", ditando os interesses deste a partir dos pressupostos de seu ateísmo. Brink é dogmático o suficiente para impor seus critérios universalmente, como regras universais da própria deusa Razão. Para mim, no entanto, seus critérios são apenas uma das partes do problema. São, para ser mais exato, uma das manifestações mais exteriores de sua profunda decisão nada racional de não se submeter a Deus, seja ele quem for. É também por essa motivação oculta (ou nem tão oculta) que Brink insiste em tratar o Deus verdadeiro como mais um deus pequeno.

13 de maio de 2013

Deveres sem pessoas - parte 6

Nesta postagem, passarei a dar mais atenção aos comentários de David O. Brink sobre o naturalismo ético no artigo A autonomia da ética, depois de ter escrito um bocado sobre seus comentários em torno do voluntarismo. Em [3.1], Brink definiu a "doutrina dos mandamentos divinos" da seguinte forma: "Se Deus existe, x é bom ou correcto se, e só se, Deus aprova x." Não discutirei a exatidão teológica da definição, nem sua pertinência. O que importa é assinalar que, para o autor, o entendimento voluntarista dessa sentença implica que "o voluntarismo e o ateísmo implicam conjuntamente o niilismo". Ele está dizendo, de modo menos pungente, a mesma coisa que Dostoyevsky afirmou ao declarar que "Se Deus não existe, tudo é permitido". Por outro lado, em [3.5], o autor extrai dessa afirmação condicional a seguinte conclusão: "Porque o naturalismo não faz as qualidades morais depender da existência ou vontade de Deus, implica que estas qualidades existiriam mesmo que não existisse Deus. Assim, o naturalismo implica que o ateísmo não implica o niilismo nem o relativismo." Em outras palavras, se o naturalismo for verdadeiro, então existe uma moral objetiva, mesmo que Deus não exista. Essa percepção é um primor de coerência lógica, no sentido da validade formal do argumento. Ao mesmo tempo, porém, constitui uma total falta de sensatez quanto ao fundamento metafísico das premissas adotadas, e isso torna o argumento inútil. Tentarei ilustrar isso com um exemplo mais palpável que mantém a mesma forma lógica. Consideremos o seguinte arrazoado, de inspiração um tanto baconiana:

Se a magia existe, podemos voltar no tempo por meio dela ou do progresso científico e tecnológico. Contudo, o argumento X prova que não existe magia. Portanto, no futuro os seres humanos serão capazes de voltar no tempo graças às descobertas científicas e desenvolvimentos tecnológicos que ainda serão feitos até lá.

Ainda que o argumento X seja imbatível e a eficácia da magia possa ser dada como nula, é fácil perceber que algo está faltando nesse arrazoado: nada ali prova que a ciência descobriu, descobrirá ou mesmo poderia descobrir um meio de proporcionar viagens no tempo. O ponto cego na argumentação de Brink é formalmente idêntico: ele não prova que há uma moral objetiva, e tampouco prova que, havendo tal coisa, ela é compatível com o materialismo. Como já apontei na segunda parte da presente série, esse problema já estava prenunciado em [1.1], e aqui atinge sua forma mais desenvolvida.

A parte final dessa seção, [5.1-6.1], foi totalmente ignorada até aqui, e agora lidarei com ela. Já expliquei por que considero falsa a escolha que ele propõe: nenhuma das opções, voluntarismo e naturalismo, corresponde à posição cristã histórica, e o voluntarismo descrito no artigo não é muito mais que um boneco de palha. Ainda assim, essa seção levanta uma questão pertinente: como é dito em [5.1], o naturalismo aparentemente "compromete a omnipotência de Deus", pois, "Se as exigências morais são independentes da vontade de Deus, e lhe dão forma, então estão para lá do seu controlo". Essa argumentação é melhor desenvolvida e expandida em [5.2], de onde extraio alguns trechos:

"Se os monoteístas tradicionais devem encará-la ou não como uma boa objecção ao naturalismo é algo que depende de como concebemos a omnipotência. Se a concebermos como a capacidade para fazer tudo, então o naturalismo compromete realmente a omnipotência de Deus. [...] Mas os teístas tradicionais enfrentam um dilema comparável em qualquer caso. É difícil acreditar que Deus poderia mudar as leis da lógica (e.g., o princípio da não contradição) ou as verdades da aritmética (e.g., que 2 + 2 = 4). Estas são verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis, e não conseguimos conceber como seria um mundo no qual não fossem verdadeiras. Se aceitarmos isto, então já reconhecemos que algumas verdades necessárias estão para lá do controlo de Deus. [...] Mas talvez a omnipotência não seja o poder para fazer tudo, mas antes o poder para fazer tudo o que é possível, tudo o que não seja inconsistente com as verdades e leis necessárias. Se aceitarmos isto, então a incapacidade de Deus para mudar as leis da lógica e da matemática não tem de comprometer a sua omnipotência. Mas, do mesmo modo, a incapacidade de Deus para tornar bens intrínsecos em males ou males intrínsecos em bens não tem de comprometer a sua omnipotência. Mas então o naturalismo não tem de comprometer a omnipotência de Deus."

Com base nesse argumento, e na discussão precedente sobre o voluntarismo, Brink conclui coerentemente em favor do naturalismo em [5.3]:

"O naturalismo não só explica como o ateísta pode reconhecer exigências morais, mas também permite aos teístas explicar a bondade de Deus e ver que os seus mandamentos se baseiam em princípios, em vez de serem arbitrários. Deste modo, o naturalismo tanto parece a melhor aposta para os ateístas e agnósticos como para os teístas."

Já discorri o bastante sobre o argumento da arbitrariedade, e também sobre a falta que faz no artigo uma defesa da conciliação possível entre naturalismo moral e ateísmo. Mas algumas coisas precisam ser ditas sobre essa questão das limitações de Deus. Em certo sentido, o cristianismo as admite. O renomado teólogo Louis Berkhof, por exemplo, afirma em sua clássica Teologia sistemática que "há muitas coisas que Deus não pode fazer. Ele não pode mentir, pecar, mudar, e não pode negar-se a Si próprio" e cita várias passagens bíblicas que afirmam tudo isso textualmente: Números 23.19, 1 Samuel 15.29, 2 Timóteo 2.13, Hebreus 6.18 e Tiago 1.13,17. Contudo, é fácil ver que o que se quer dizer com isso é que Deus não pode fazer tais coisas porque fazê-las seria contrário à sua natureza, e não porque haja leis ou princípios acima dele impossibilitando-o de fazê-las. Isso é o que distingue tais impossibilidades das que Brink tem em mente. Quando este diz que Deus não pode mudar as leis da lógica, da matemática e da moral, tem em mente esse segundo tipo de impossibilidade, como o contexto de todo o artigo deixa claro. Já defendi que a ideia de uma lei moral impessoal em sentido último carece de sentido, pois todo dever moral subentende uma relação entre pessoas. No entanto, não é óbvio que o mesmo possa ser dito sobre leis lógicas e matemáticas, e até alguns pensadores cristãos se inclinam a uma posição mais próxima à de Brink nesses casos. A questão levantada é relevante, e devo dizer o que penso sobre isso. Mas creio que posso fazer isso melhor valendo-me de uma pequena digressão, e peço desde já a paciência do leitor.

O teólogo e filósofo Gordon Clark era, como eu, calvinista e pressuposicionalista. Não obstante, todos os meus leitores razoavelmente assíduos sabem que tenho reservas algo severas quanto à sua filosofia. Certa vez, em comentário a um de meus posts, um leitor citou a tese clarkeana de que "a lógica [é] um atributo da Deidade". Na verdade, Clark acreditava que não havia nenhum problema em traduzir João 1.1 como "No princípio era a Lógica, e a Lógica estava com Deus, e a Lógica era Deus". Recentemente, escrevi o que penso sobre isso nos seguintes termos:

"[...] afirmar que "a lógica [é] um atributo da Deidade" [...] quer dizer que a coerência lógica é um atributo dos pensamentos de Deus. Posso concordar com isso, no sentido de que tais pensamentos podem ser, em princípio, estruturados e declarados de forma lógica por Ele mesmo. Isso não quer dizer, porém, que [...] Deus pense efetuando silogismos ou algo do tipo. Só seres finitos e temporais, que precisam raciocinar para conhecer a verdade sobre as coisas, pensam concretamente dessa forma. Se os pensamentos de Deus podem ser estruturados de forma lógica, só pode ser por meio de uma adaptação a posteriori, e isso nada diz sobre o modo como Deus pensa concretamente. Por isso evito dizer que "a lógica [é] um atributo da Deidade": essa formulação é imprecisa e induz ao erro por excesso de simplificação."

Acho importante citar essa breve argumentação porque ela mostra não só que não há consenso entre os cristãos sobre o tema, mas também que, em minha opinião, não se pode dizer apropriadamente que as leis da lógica sejam parte de Deus, e muito menos que estejam acima dele. Pelo motivo que levantei acima, falando em termos mais rigorosos, as leis da lógica só descrevem adequadamente o pensamento correto de criaturas temporais dotadas de conhecimentos limitados. Ao mesmo tempo, procurei mostrar que isso não significa que Deus seja irracional, pois a diferença qualitativa entre o pensamento de Deus e o nosso se deve a uma limitação nossa, não dele. Talvez essa diferença possa ser enquadrada no conceito de transposição, que Lewis apresentou em um dos capítulos de seu livro Peso de glória, e do qual fiz uma breve exposição nesta postagem. Seja como for, não considero convincentes os argumentos de Brink, que já transcrevi acima, mas repito aqui:

"É difícil acreditar que Deus poderia mudar as leis da lógica (e.g., o princípio da nãocontradição) ou as verdades da aritmética (e.g., que 2 + 2 = 4). Estas são verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis, e não conseguimos conceber como seria um mundo no qual não fossem verdadeiras. Se aceitarmos isto, então já reconhecemos que algumas verdades necessárias estão para lá do controlo de Deus."

Há dois problemas nessa linha argumentativa. O primeiro é que dizer que "não conseguimos conceber" algo de modo algum prova a impossibilidade metafísica desse algo. Eu poderia dizer que não consigo deixar de atrair outro corpo material com uma força diretamente proporcional ao produto de nossas respectivas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância nos separa. Mas isso, dentro de uma cosmovisão "teísta" (pressuposta nesse ponto da argumentação de Brink), só prova que Deus estabeleceu a gravitação universal como uma das leis que regem o comportamento da matéria. Não prova que Deus não poderia criar um mundo em que tal lei não existisse ou fosse diferente. Naturalmente, Brink poderia objetar que um universo com outras leis físicas é ao menos concebível, o que não ocorre com as leis lógicas e aritméticas. Porém, talvez isso se deva ao simples fato de que as leis físicas se aplicam à matéria, não ao pensamento. Nossos pensamentos podem conceber outras leis da gravitação universal apenas porque não estão sujeitos à gravitação universal, uma vez que não possuem massa. Se não podemos conceber leis lógicas diferentes - o que não considero óbvio, mas assumirei como verdadeiro para fins de argumentação -, é porque as leis que existem foram criadas justamente para legislar sobre nossos pensamentos. Assim, nossa mente não pode pensar sem as leis elementares da lógica assim como nosso corpo não pode existir sem atrair outros corpos de determinada maneira, e pela mesma razão: nossa incontornável sujeição às leis que Deus estabeleceu para as diversas esferas de sua criação. Isso não prova de modo algum que as leis não poderiam ser outras em qualquer dos casos. Brink não tem nenhuma prova de que as leis da lógica e da aritmética "são verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis", e sequer tenta fornecê-la. Essa frase apenas revela uma confusão de categorias epistemológicas com categorias ontológicas. E esse é o primeiro problema. Na próxima postagem descreverei o outro e farei algumas considerações finais sobre essa seção do artigo.

2 de maio de 2013

Deveres sem pessoas - parte 5

Na última postagem, procurei mostrar que o artigo A autonomia da ética, de David O. Brink, descreveu mal as vertentes voluntarista e naturalista do cristianismo, representadas, segundo ele, nas obras de Guilherme de Ockham e Tomás de Aquino, respectivamente. Antes de prosseguir, julgo importante fazer alguns esclarecimentos sobre isso. Em primeiro lugar, é claro que, em teoria, é possível que Brink esteja certo, e Boehner, Gilson e Pieper estejam errados. Contudo, os três filósofos citados, além de serem católicos - o que lhes dá a vantagem natural de uma identificação subjetiva mais profunda com a cosmovisão medieval -, são também acadêmicos de renome no estudo da filosofia cristã pré-moderna; Boehner foi um dos grandes responsáveis pela renovação do interesse pela escolástica franciscana (que inclui Ockham) no século XX, e os outros dois foram neotomistas eminentes; Gilson, em especial, é conhecido por qualquer um que saiba qualquer coisa sobre escolástica. Em comparação com eles, Brink é quase tão amador quanto eu quando fala sobre Ockham e Aquino, de modo que acho justo conceder a eles o benefício da dúvida. Além do mais, conheço o suficiente de filosofia moderna para saber que um entendimento profundo e uma sensibilidade justa a cosmovisões e filosofias pré-modernas são qualidades extremamente raras, especialmente em meios intelectuais como esses em que o Dr. Brink circula habitualmente. A propósito, é significativo o fato de que a pequena galeria de filósofos presente no topo de sua página pessoal pula sem cerimônia de Aristóteles para Kant. Também nisso o Dr. Brink é um filósofo moderno típico, e isso não é um elogio.
 
Esclareço também que não pretendo negar que haja diferenças importantes entre Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham, e muito menos que haja divergências minhas em relação a ambos, inclusive quanto à metafísica da moralidade. Digo apenas que tais diferenças envolvem sutilezas que o Dr. Brink não conseguiu captar, e isso o levou a forçar a visão cristã dos fundamentos da moral a caber em categorias que não lhe são próprias: as do paganismo grego, como já observei. Nenhuma das opções oferecidas por Brink descreve bem as ideias cristãs sobre o tema. E aqui não me refiro só às posições de Aquino e Ockham, mas também à "minha" própria (que obviamente não foi inventada por mim, daí as aspas). É por isso que não posso me identificar como voluntarista ou naturalista segundo os sentidos dados no artigo.
 
Finalmente, devo dizer que não considero impossível a formulação de definições mais precisas para os termos "naturalismo" e "voluntarismo" de modo a torná-los úteis como descrição fidedigna de certa divergência filosófica interna à cristandade. Norman Geisler, que é um protestante consideravelmente próximo do tomismo em sua filosofia, também é um crítico do que chama de "voluntarismo divino", e advoga - por exemplo, em sua Enciclopédia de apologética - uma visão que chama de "essencialismo divino". Contudo, foge ao meu objetivo o esforço de redimir o vocabulário usado por Brink; e, de qualquer modo, também estou um tanto longe de ser um discípulo de Geisler. O que quero dizer é que, apesar das distorções embutidas na formulação de Brink, vejo nela algo válido: a oposição que ele expressou muito mal é, no fim das contas, entre pessoalidade e impessoalidade. Trata-se da mesma oposição que John Frame descreveu, conforme a citação que fiz na terceira parte. Sendo mais preciso, a questão é se o fundamento metafísico último da moralidade é uma pessoa ou um princípio. O problema é que Brink, talvez por falta de familiaridade com metafísica, teologia e antropologia filosófica, expressou desastradamente ambos os pólos, reduzindo a personalidade a uma simples "vontade", artificialmente abstraída e desconectada das demais faculdades de um ser pessoal, e não se preocupando em refletir sobre que tipo de ser impessoal poderia ser o fundamento de uma moral objetiva.
 
Na verdade, a posição do Dr. Brink é mais mal formulada do que parece à primeira vista, e isso é demonstrado em [2.4] por sua própria definição de naturalismo como a ideia que "faz a piedade de algo depender da sua natureza", em contraste com o voluntarismo, que "faz a piedade de algo depender da vontade de Deus". A rigor, essa contraposição não faz sentido. Para o cristão, tanto a vontade de Deus quanto a natureza de uma pessoa (ou situação) estão envolvidas na avaliação moral desta última. Dizer que ela é (ou não é) moralmente correta significa que a sua natureza está (ou não está) em conformidade com a vontade de Deus. Qualquer juízo moral pressupõe um exame da natureza da coisa à luz de um padrão normativo. O protesto do cristianismo contra Brink não é quanto à natureza da coisa avaliada, e sim quanto à natureza do padrão com base no qual essa coisa é avaliada. Na verdade, não creio que Brink esteja inconsciente disso em seus melhores momentos. Tal consciência se manifesta em várias partes do artigo, como, por exemplo, em [4.1], com a ênfase nos "princípios" com base nos quais um Deus naturalista amaria as coisas. O que Sócrates e Eutífron procuravam era justamente esse princípio à luz do qual a natureza das pessoas (ou situações) poderia ser declarada moralmente boa ou má.
 
Contudo, essa consciência desaparece em alguns momentos cruciais, como na própria definição de naturalismo. O autor seria mais claro com os leitores (e consigo mesmo) se o definisse como a ideia de que o fundamento da objetividade moral é um princípio impessoal, ou que a natureza das coisas é boa ou má em virtude de sua conformidade ou não com um princípio impessoal. A falta de clareza sobre o que está em jogo é o que permite ao Dr. Brink se situar em uma confortável ambivalência: ele se lembra dos princípios impessoais quando precisa de sua existência para denunciar a suposta arbitrariedade divina, e se esquece deles quando chega sua vez de fazer o trabalho duro e mostrar que sua própria posição é menos arbitrária que a posição "teísta". Não creio que essa ambivalência seja consciente, o que seria nada menos que desonesto da parte do autor. Mas, mesmo de um ponto de vista estritamente intelectual, sua falta de rigor inviabiliza completamente a defesa daquilo que ele defende em seu artigo.
 
Quando pensamos nesses termos, isto é, na questão do artigo como uma escolha entre um fundamento metafísico pessoal ou impessoal para a moralidade, a opção do Dr. Brink não encontra apoio, nem em Tomás de Aquino, nem em Guilherme de Ockham. Assim como eu, e apesar das diferenças, ambos veem em Deus esse fundamento, nem que seja apenas pela simples razão de que não há outro candidato. Afinal, para o cristianismo, tudo o que existe e que não é Deus faz parte de sua criação, inclusive leis e princípios. Brink considera isso um absurdo; para ele, quem não se sujeita a princípios superiores a si mesmo é arbitrário por definição, e decorre daí seu argumento baseado em considerações sobre a "vontade" de Deus. É claro que sua falsa concepção de Deus como uma espécie de vontade flutuante no vácuo colabora para fortalecer sua convicção. Se o Dr. Brink levasse a sério a ideia da pessoalidade de Deus, ainda que somente para fins de refutação, veria que seu trabalho não é tão simples: uma pessoa de verdade não tem uma vontade arbitrária, e sim uma vontade que brota do conjunto dos elementos constituintes de sua personalidade, de sua natureza, de seu caráter. Esse é o único "naturalismo" moral admitido pelo cristianismo: a natureza de Deus como normativa para os seres criados à sua imagem e semelhança. O Dr. Brink nega isso, mas é significativo o fato de que ele não conseguiu - na verdade, nem tentou ou, pior ainda, não percebeu que precisaria tentar - propor uma alternativa real, dizendo que outra natureza poderia ser normativa para nós. Seu procedimento é puramente ofensivo: denunciar o argueiro no olho do outro para não ter de pensar na trave que está em seu próprio olho.
 
Porém, o problema da tese do Dr. Brink é mais grave que isso. Há uma arbitrariedade dogmática até em sua definição do que é arbitrário e do que não é. Para ele, uma pessoa é arbitrária se não se submete a uma lei superior. Mas a lei também pode ser considerada arbitrária se não houver uma pessoa com autoridade para estabelecê-la. Talvez isso possa ser considerado uma versão do velho paradoxo do ovo e da galinha. Estamos de volta à questão: o fundamento último da realidade é pessoal ou impessoal? O que me espanta não é que Brink se comprometa com a segunda opção, e sim que o faça sem sequer perceber a existência de duas opções, e não veja que toda a sua argumentação apenas pressupõe dogmaticamente a validade da opção que fez. Frame está certo quando diz que o incrédulo é cego para a escolha fundamental que faz ao recusar a personalidade.
 
Porém, não considero que o paradoxo seja de todo insolúvel nesse caso. Tenho tentado mostrar que o pressuposto de Brink é bastante problemático mesmo à parte de um compromisso absoluto com o cristianismo. Lewis expressou bem o problema, em Cristianismo puro e simples, quando, depois de gastar alguns capítulos defendendo a objetividade da lei moral, afirmou:
 
"Tudo o que alcancei é um Algo que está dirigindo o universo, e que aparece em mim como uma lei que me incita a fazer o que é correto e faz com que eu me sinta responsável e desconfortável quando faço o que é errado. Penso que temos de assumir que esse Algo é mais semelhante a uma mente que a qualquer outra coisa que conhecemos - pois, afinal, a única outra coisa que conhecemos é matéria, e é difícil imaginar um punhado de matéria dando instruções."
 
Não é difícil ver aqui a influência da matriz filosófica idealista de Lewis, não só em sua linguagem, mas também no próprio conteúdo de suas ideias. Ele acrescenta, por exemplo: "Não pense que estou indo mais rápido do que realmente estou. [...] é claro que esse Algo não precisa ser muito semelhante a uma mente, menos ainda a uma pessoa." Creio que essa hesitação em atribuir a objetividade moral a uma pessoa revela a influência do monismo semi-hegeliano defendido por filósofos como T. H. Green e F. H. Bradley, a que Lewis aderiu logo após abandonar o ateísmo, muito embora, ainda antes de se tornar cristão, ele tenha abandonado esse monismo impessoal em troca de um idealismo pessoal, à maneira de Berkeley, justamente por crer que o primeiro só trazia desvantagens em termos de clareza conceitual. Tudo isso é narrado em Surpreendido pela alegria. Lewis é um filósofo cauteloso o suficiente para evitar o salto lógico de tomar como certo um conceito que ainda não defendeu com argumentos. Mas vejo como ponto negativo o fato de ele não ter argumentado em favor da personalidade nesse ponto. De qualquer modo, a despeito da informalidade, creio que ele enunciou um argumento válido: a objetividade da lei moral não é compatível com o materialismo. Frame foi adiante com esse argumento, desenvolvendo-o no seguinte trecho de seu livro Apologética para a glória de Deus (os destaques são dele):
 
"[...] de onde vem a autoridade do princípio moral absoluto? [...] por que deveríamos prestar-lhe o respeito que de fato prestamos? Em última instância, somente dois tipos de resposta são possíveis: a fonte da autoridade moral absoluta é pessoal ou impessoal. Considere em primeiro lugar a última possibilidade. Isso significaria a existência de alguma estrutura impessoal ou lei no universo que coloca e requer justa fidelidade a seus preceitos éticos. Entretanto, que espécie de ser impessoal poderia fazer isso? [...] O que poderíamos aprender, [em termos] de significância ética, de colisões de partículas subatômicas totalmente ao acaso? [...] como é que uma estrutura impessoal poderia criar uma obrigação? [...] Ou: em que base uma estrutura impessoal demanda lealdade ou obediência? [...] De onde, então, vem tal dever? O que há, aí fora, capaz de impor uma obrigação absoluta sobre os seres humanos? Para responder a isso, temos de deixar o ambiente dos princípios impessoais e voltar ao ambiente das pessoas. Obrigações e lealdades brotam no contexto de relacionamentos pessoais. Em termos da teologia reformada, podemos colocar do seguinte modo: obrigações, lealdades - e, portanto, moralidade - são de caráter pactual."
 
A ideia de uma obrigação moral à parte de relações pessoais é absolutamente sem sentido e, ao menos em algum nível, todos sabemos disso. Todo dever é um dever em relação a alguém. A palavra-chave, oportunamente usada por Frame, é "lealdade". Mesmo a lealdade a uma causa ou instituição (igreja, partido, país) é, em última análise, lealdade às pessoas ligadas a essa causa ou instituição. Nosso dever é o direito de alguém em relação a nós. Não faz sentido falar em lealdade a seres não-pessoais, e tampouco em direitos deles sobre nós. Se não quero destruir um objeto que pertenceu a meu bisavô e que lhe era caro, é por lealdade ao meu bisavô (ainda que ele não mais exista), não ao objeto. Se não posso partir a cabeça de meu vizinho com um cabo de vassoura, é porque o vizinho tem direito à integridade de seu crânio, não porque o cabo de vassoura tenha o direito de não ficar sujo de sangue. A objetividade da lei moral implica a autoridade de um Legislador pessoal, e implica também a natureza pessoal da realidade última. Brink é inconsequente, na medida em que não extrai as devidas conclusões de seu compromisso com a objetividade da ética. Ele não percebe que não há deveres à parte de relações pessoais.