7 de dezembro de 2007

Quarta colheita

Ultimamente não tenho tido muitas conversas com amigos em torno dos assuntos publicados neste blog. E, das que tive, apenas uma parece-me digna de ser comentada em público. Mas há outras duas questões relacionadas a posts anteriores que julgo dever comentar, e esses três assuntos bastarão para preencher esse espaço. Justifica-se, portanto, a existência desta revisão, a quarta que publico desde a inauguração do blog.

A primeira coisa que me julgo no dever de fazer é um esclarecimento que tem, na verdade, algo de uma retratação, não tanto pelo que eu disse quanto pelo que eu deveria ter dito. Em fevereiro, publiquei uma análise da letra de Geni e o zepelim, de Chico Buarque, na qual apontei um exemplo do parasitismo moral exercido pelo marxismo sobre a cosmovisão judaico-cristã. Meu grande amigo Gustavo Gama postou então um comentário sobre essa análise dizendo, dentre outras coisas, o seguinte:

"Quanto ao parasitismo, ele é bem calculado sim, com certeza. Acredito que ele tenta dar uma solução para 2000 anos em que os cristãos não conseguiram por em prática um modelo de justiça social. 2000 anos em que eles tinham a solução, tinham a faca e o queijo na mão (além do Deus Todo-Poderoso) e fingiram que não era com eles... Isso é uma especulação, não sei se era isso que passava pela cabeça do Marx enquanto ele elaborava sua análise/proposta de solução dos problemas sócio-econômicos que eram enfrentados por ele e seus contemporâneos."

Poucas semanas depois, ao redigir minha Primeira colheita, em que lidei, dentre outros assuntos, com certas críticas dirigidas contra alguns aspectos secundários da análise feita por mim no texto Assalto ao velho restaurante, eu disse:

"Para entender que isso [o parasitismo do marxismo sobre a tradição judaico-cristã] é assim desde o início, basta notar que Marx foi cristão em sua juventude (como foi muito bem lembrado por meu amigo Gustavo) e era judeu por nascimento. Não pode haver dúvida de que a preocupação social de Marx, por mais distorcida que fosse, inspirou-se nessa tradição (especialmente nos textos dos profetas do Antigo Testamento) para depois se voltar contra ela e acusá-la de ser a fonte de legitimação da injustiça e acomodação diante da mesma."

O que eu pretendia ressaltar nesse trecho é que a própria revolta de Karl Marx contra as condutas abomináveis dos judeus e cristãos só foi possível com base em critérios que são, eles próprios, derivados da moral judaico-cristã. Portanto, ao transformar sua crítica às práticas dos judeus e cristãos em uma rejeição das religiões em si mesmas, Marx teria incorrido numa flagrante inconsistência. Note-se, porém, que eu parti do pressuposto de que a especulação do Gustavo foi essencialmente correta: Marx seria um sujeito que cria na objetividade dos valores morais, e estaria, motivado por esse idealismo moral, sinceramente interessado em eliminar as injustiças e opressões presentes na sociedade em que vivia.

Na verdade eu já tinha, nessa época, razões para suspeitar de que esse quadro não era lá muito verídico. Afinal, eu já lera um livro do pensador católico Auguste Etcheverry que apontava, com citações e tudo mais, para o fato de que a objetividade moral não tinha lugar na doutrina marxista, a qual era, de modo intrínseco e declarado, materialista, determinista e amoral. Na época, apesar da farta documentação, fui impedido, talvez por um esquerdismo residual, de levar totalmente a sério as declarações de Etcheverry. Eu jamais vira críticas tão contundentes ao marxismo, e temi que o autor estivesse exagerando em sua descrição. Foi essa a motivação por trás da minha cautela em discordar abertamente do Gustavo, o que me levou a elaborar uma crítica às idéias de Marx que, embora não menos acertada, foi bem mais fraca do que poderia ter sido. Restringi-me, na verdade, a repetir com minhas próprias palavras a crítica feita pelo escritor cristão Vinoth Ramachandra, do Sri Lanka, no livro A falência dos deuses (Gods that fail), que, aliás, me foi emprestado pelo próprio Gustavo na época em que moramos juntos na saudosa República Vizinhos do Tutan. Isso me leva a crer que tais semelhanças no conteúdo dos discursos não são, na verdade, meras coincidências.

Comecei a perceber que minha crítica ao marxismo havia de fato sido branda demais quando, alguns dias depois, um outro amigo, o André Luiz, enviou-me um e-mail comentando certas declarações feitas por mim no blog. Sobre essa questão específica, as palavras dele foram:

"O marxianismo, isto é, o marxismo tal como descrito nas obras de Marx - deixando-se de lado os seus desenvolvimentos posteriores - é originariamente amoral, baseando-se em uma análise determinista da História. Na propaganda ideológica que se seguiu, o marxismo teve de adotar, de maneira vaga, os valores judaico-cristãos: ou melhor, ressignificá-los, parasitando-os para vencer os embates eleitorais, como você apontou de maneira excelente. Mais tarde é que novas formas marxistas passaram a defender valores em um âmbito moral, voltados a substituir a ética cristã. Para isto são mantidas as aparências enquanto o conteúdo é sistematicamente modificado."

De lá pra cá li um bocado de coisas sobre o assunto, e concluí que o André tem razão. Não pretendo enveredar agora por uma defesa desse ponto de vista. O que importa é ressaltar que seria desonesto de minha parte não me retratar do meu equívoco e reconhecer que errei ao alimentar suspeitas infundadas contra Etcheverry. Num certo sentido, sem dúvida, eu estava ainda mais certo do que supunha quanto ao parasitismo que denunciei em Assalto ao velho restaurante. Conhecendo um pouco mais sobre a proposta de Gramsci quanto a uma "revolução cultural", bem como sobre a Escola de Frankfurt, vejo que esse parasitismo é bem mais profundo do que eu imaginava, inclusive como estratégia política revolucionária sistematizada. Mas eu estava errado quando dei a entender que o marxismo enquanto tal, especialmente em sua forma original, fundava-se em preocupações de ordem moral. Um dia talvez eu exponha isso tudo com mais detalhes aqui, depois que eu tiver estudado um pouco melhor esse tema, que, aliás, está bem longe de ser uma das minhas prioridades no momento.

O segundo ponto que desejo comentar é algo que eu disse na Terceira colheita. Explicando que o objetivo do post A trindade na diversidade era o de definir adequadamente as diferenças entre evolucionismo, criacionismo e design inteligente, escrevi:

"Esse é um problema que me esforcei para resolver, e creio que agora o consegui. Mas não tenho tanta certeza disso, pois um amigo me informou durante uma conversa que Francis Collins, coordenador do famoso Projeto Genoma Humano, defende em seu livro recém-publicado, The language of God, uma concepção que se distingue de todas as três que apresentei aqui. Como eu ainda não li o livro e meu amigo não pôde me dar informações mais detalhadas porque também não havia terminado a leitura, não posso me pronunciar a respeito por enquanto, e limito-me agora a prometer que retornarei ao tema num post futuro se constatar que a minha classificação tripartidária se tornou desatualizada, ou se houver mais algo interessante a ser dito sobre o tema."

O amigo a que me referi era, novamente, o André. Depois de concluir a leitura do livro, ele contou-me que Collins na verdade é um evolucionista teísta como qualquer outro, e é darwinista. As definições que forneci continuam válidas, portanto. Porém, devo também deixar registrado que fui enganado pela minha memória ao redigir o trecho acima. O que o André havia dito, na realidade, era que Collins parecia se opor tanto ao criacionismo e ao design inteligente quanto ao darwinismo, e não que ele se opunha ao evolucionismo em si, do qual o darwinismo é apenas uma corrente, embora, sem dúvida, a principal. O caso, de qualquer forma, também não era esse, mas achei que valeria a pena informar os leitores sobre o desfecho dessa história.

O terceiro ponto, ainda vinculado ao tema da evolução e seus antagonistas, é o comentário do meu amigo Fortes ao meu post Visita a um velho conhecido. Quem quiser pode conferir lá, mas o que ele disse, em resumo, foi que considera o design inteligente pouco científico por ser cômodo. Além disso, ele imagina que o problema da origem da vida poderia ser resolvido postulando-se a presença de catalisadores apropriados, como ocorre na química dos polímeros (assunto que, devo dizer, meu amigo conhece muito bem). Enviei-lhe um e-mail em resposta, e publico seu conteúdo aqui, com leves adaptações, muito embora essa discussão fuja ao tema do post. Não publicarei a resposta do Fortes porque ele não contestou nenhuma das minhas afirmações, limitando-se a prestar certos esclarecimentos que eu havia solicitado.

"Quanto ao seu comentário, devo, antes de respondê-lo, prestar um esclarecimento. Minha preocupação principal nesse post não era a de criticar o evolucionismo ou defender o design inteligente, embora eu possa ter transmitido essa impressão. O objetivo era apenas protestar contra uma crítica absolutamente idiota vinda de um sujeito que ignora absolutamente tudo a respeito do tema, o que, no entanto, não o impede de escrever a respeito com absoluta segurança. Não pude deixar de achar ridícula a pretensão de um professor de literatura (é isso o que Lenny Flank é) de, no mesmo artigo em que demonstra não saber nada sobre química, biologia e estatística, pra não falar em interpretação de textos, acusar um Ph.D. em bioquímica de ser ignorante em sua própria área. O que não significa que não haja pessoas muito mais qualificadas para defender a evolução.

Existe entre os filósofos da ciência um interminável debate sobre quais seriam, afinal de contas, os 'critérios de demarcação', ou seja, quais características distinguem as teorias genuinamente científicas de todas as demais. Nunca ouvi falar, porém, que 'comodidade' ou 'incomodidade' fosse um desses critérios, de modo que não posso concordar com sua afirmação de que o design inteligente é pouco científico por ser cômodo. Aliás, como você sabe, ele incomoda muita gente. Não conheço em detalhes todos as linhas de argumentação envolvidas, mas, pelo menos a mais famosa delas, a complexidade irredutível, poderia ser refutada de maneira muito simples. E o fato de que ninguém tenha feito isso até agora (e quase ninguém tenha tentado) é em si mesmo bastante significativo, se não quanto a qual dos lados tem razão, pelo menos quanto a qual deles está mais acomodado. Afinal, comodismo por comodismo, considero no mínimo igualmente acomodados os darwinistas que, em vez de produzirem uma resposta conceitual e experimentalmente válida ao desafio proposto por Behe e seus amigos, ficam sentados confortavelmente em suas cátedras murmurando desculpas filosóficas como 'criacionismo disfarçado' e 'isso não é ciência'.

É principalmente por causa dessa atitude dogmática e petulante de grande parte da comunidade científica que eu considero o design inteligente uma teoria muito salutar e digna do meu apoio. Embora até o momento, de fato, o argumento deles me pareça mais forte que o dos evolucionistas em certos aspectos, não acho impossível que uma explicação evolucionária qualquer venha a suplantá-lo futuramente, e não tenho quaisquer objeções filosóficas ou teológicas a essa hipótese. Mas, sendo obrigado a julgar as teorias pela evidência presente, e não por hipotéticas descobertas futuras, minhas leituras sobre o tema me convenceram de que há muita coisa muito mal explicada, ou não explicada de maneira alguma, nas teorias evolutivas atuais, e que os cientistas que as defendem, mesmo os mais eminentes e capazes, só o fazem por compromisso ideológico ou por aquele tipo de estreiteza mental institucionalizada contra a qual Thomas Kuhn já nos advertia há mais de quarenta anos.

Não sei quanto você estudou o assunto mas, por via das dúvidas, acho que vale a pena dizer também que os exemplos de sistemas bioquímicos que Behe e outros consideram irredutivelmente complexos não se limitam à questão da origem da vida. Em Darwin's black box, Behe discute uma porção de outros casos, vários dos quais obviamente só surgiram muito depois na história da vida, como o sistema imunológico, a visão, os flagelos bacterianos e os mecanismos de transporte de substâncias através das células. Muitos desses sistemas específicos seriam, segundo a teoria, irredutivelmente complexos em si mesmos, não sendo, portanto, necessário supor que apenas a célula viva como um todo se enquadra nessa categoria. Assim, a resolução do problema da origem da vida seria apenas uma parte, embora provavelmente a mais difícil e importante, da refutação do conceito de complexidade irredutível.

E essa parte, aliás, vai muito mal. Tanto que tem gente oferecendo um milhão de dólares só por uma explicação bem fundamentada para a origem da informação genética nos seres vivos (veja aqui). E isso não é coisa de criacionistas. Não sei nada sobre polímeros, de modo que não posso julgar o valor da analogia que você propôs. Aliás, agradeço muito se você puder me explicar melhor. Mas a idéia de catalisadores já foi muito explorada ao longo da história dos experimentos sobre abiogênese, e até Carl Sagan se meteu a dar sugestões nesse sentido. Para ser mais exato, já se tentou de tudo para gerar as reações químicas apropriadas; desde a utilização de meios argilosos até a teoria do RNA autocatalítico, passando pelos proteinóides de Sidney Fox. Todos têm problemas teóricos sérios, e nenhum produziu resultados experimentais que chegassem perto de serem considerados promissores. Não acho impossível, volto a dizer, que alguém consiga algo do tipo qualquer hora dessas. Mas por enquanto as explicações disponíveis parecem-me puramente imaginativas, sem qualquer conexão com a realidade. Quem quiser acreditar acredite, mas não venham me dizer mais tarde que a teoria está bem fundamentada, faltando apenas acertar alguns detalhes. Como disse Phillip Johnson, é como se alguém achasse que é possível explicar o funcionamento do avião imaginando-se um fusca com asas."

2 comentários:

Anônimo disse...

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Alexsandro disse...

Rapaz, seu blog é muito bom, não sei porque levo tanto tempo pra passar por aqui e devorar tudo que encontro pela frente.
Grnade abraço.