25 de agosto de 2007

Fragmentos de sensatez

Há nove dias, meu amigo virtual Gustavo Nagel postou, como de costume, um curto e excelente texto em seu blog. Intitulado Simplesmente imprescindível, o post traz uma breve consideração sobre o estilo e o valor do escritor inglês G. K. Chesterton, que eu mesmo admiro profundamente e cito freqüentemente aqui. Algum dia eu pretendo dedicar a Chesterton um post decente, pois ele certamente o merece. Por ora, no entanto, limito-me a publicar aqui uma seleção de frases suas que, creio eu, darão uma vaga idéia não só do seu estilo literário, bem-humorado, paradoxal, inusitado e incansavelmente criativo, como também do conteúdo de algumas de suas idéias, as quais justificam plenamente a afirmação, feita por C. S. Lewis, de que ele é "mais sensato que todos os outros modernos juntos". Inspirado pela menção do Gustavo à sabedoria presente em cada frase desse grande escritor, decidi revisitar o acervo de citações de uma importante entidade de divulgação das suas obras nos EUA, The American Chesterton Society. O slogan dessa sociedade, que eu nem vou tentar traduzir para não cometer uma violência contra o belo jogo de palavras da expressão inglesa, resume bem a essência do pensamento de Chesterton e sua tremenda importância para o mundo moderno: "Common sense for world's uncommon nonsense". Selecionei, traduzi e reproduzo abaixo um quarto das duzentas e cinqüenta e duas citações ali presentes. Espero assim poder dar uma noção vaga e geral acerca de Chesterton aos meus leitores que não o conhecem. Não que eu pense ser esse o melhor meio de apresentá-lo. Por mais interessantes que sejam suas frases, elas acabam perdendo parte de sua profundidade, beleza e significado quando são retiradas da companhia das frases adjacentes; a argumentação de Chesterton, embora esteja longe de ser uma rígida cadeia de silogismos, é dotada de uma continuidade surpreendente, quase orgânica. Chesterton só pode ser devidamente apresentado a nós por seus próprios livros, se é que o pode; pois Bernard Shaw, seu grande amigo pessoal e incansável inimigo intelectual, já advertia que, em debate contra esse admirável polemista, seus adversários não conseguiam abarcar senão a metade do seu intelecto. De qualquer forma, eliminei as frases que talvez não possam ser adequadamente compreendidas isoladamente, e eliminei também algumas que considerei de difícil tradução ou que eram grandes demais, e ainda as que considerei menos importantes enquanto reveladoras das suas idéias. Finalmente, é claro, tive de fazer uma seleção final para que este post não ficasse grande demais. Ainda assim, temo ter fracassado nesse último aspecto. E isso significa que é hora de eu encerrar minhas considerações introdutórias e deixar que o próprio Chesterton fale através de seus fragmentos.

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"Eu creio que o que realmente acontece na história é isto: o velho está sempre errado, e as pessoas jovens estão sempre erradas sobre o que há de errado com ele. A forma que isso toma na prática é esta: que, enquanto o velho se agarra a algum costume estúpido, o jovem sempre o ataca com alguma teoria que resulta ser igualmente estúpida."

"Nós não temos tido boas óperas cômicas ultimamente, pois o mundo real tem sido mais cômico que qualquer ópera possível."

"O reformador está sempre certo sobre o que é errado. Mas está geralmente errado sobre o que é certo."

"O homem é sempre algo pior ou algo melhor que um animal; e um mero argumento baseado na perfeição animal jamais o toca de modo algum. Assim, no sexo, nenhum animal é cavalheiresco ou obsceno. E, da mesma forma, nenhum animal inventou algo tão ruim quanto a bebedeira, nem tão bom quanto a bebida."

"Uma coisa pode ser triste demais para ser crida, ou perversa demais para ser crida, ou boa demais para ser crida; mas não pode ser absurda demais para ser crida neste planeta de rãs e elefantes, de crocodilos e lulas."

"Progresso é um comparativo para o qual nós não estabelecemos o superlativo."

"Progresso deveria significar que estamos sempre mudando o mundo para ajustá-lo a uma visão, ao invés de estarmos sempre mudando a visão."

"Minha atitude diante do progresso passou do antagonismo ao enfado. Há muito cessei de discutir com pessoas que preferem a quinta-feira à terça-feira porque hoje é quinta-feira."

"Os homens inventam novos ideais porque não ousam tentar velhos ideais. Eles olham adiante com entusiasmo porque têm medo de olhar para trás."

"Tradição significa conceder votos à mais obscura de todas as classes: nossos ancestrais. É a democracia dos mortos. A tradição recusa submeter-se a essa arrogante oligarquia que meramente ocorre estar andando por aí."

"O passado já não é o que era."

"A guerra não é a melhor forma de resolver divergências; é a única forma de impedir que outros a resolvam por você."

"O verdadeiro soldado luta não porque odeia o que está à sua frente, mas porque ama o que está atrás de si."

"Uma vez abolido Deus, o governo se torna Deus."

"A Declaração de Independência dogmaticamente baseia todos os direitos sobre o fato de que Deus criou todos os homens iguais. E ela está certa; pois, se não foram criados iguais, eles certamente evoluíram desiguais. Não há base para a democracia exceto em um dogma sobre a origem divina do homem."

"Ele é um crítico muito superficial que não é capaz de ver o eterno rebelde no coração de um conservador."

"Você nunca pode ter uma revolução para estabelecer uma democracia. Você deve ter uma democracia para ter uma revolução."

"Não pode haver uma nação de milionários, e nunca houve uma nação de camaradas utópicos; mas tem havido um número incontável de nações de camponeses toleravelmente contentes."

"A totalidade do mundo moderno se dividiu entre conservadores e progressistas. O trabalho dos progressistas é prosseguir cometendo erros. O trabalho dos conservadores é evitar que os erros sejam corrigidos."

"Amor significa amar o não amável, ou ele não é uma virtude, afinal."

"O casamento é um duelo até a morte do qual nenhum homem honrado deve declinar."

"Os primeiros dois fatos que um garoto ou garota saudável sente sobre o sexo são estes: primeiro, que é bonito; e depois, que é perigoso."

"A Bíblia nos diz para amarmos nossos vizinhos, e também para amarmos nossos inimigos, provavelmente porque eles são geralmente as mesmas pessoas."

"Há aqueles que odeiam o cristianismo e consideram esse ódio como um amor abrangente por todas as religiões."

"O ideal cristão não foi tentado e considerado insatisfatório; foi considerado difícil e abandonado sem tentativas."

"Tem sido dito com freqüência, muito verdadeiramente, que a religião é a coisa que faz o homem ordinário sentir-se extraordinário; é uma verdade igualmente importante que a religião é a coisa que faz o homem extraordinário sentir-se ordinário."

"Se um homem dissesse que o Natal é apenas uma desculpa hipócrita para a bebedeira e a gula, isso seria falso, mas conteria um fato oculto em algum lugar. Mas quando Bernard Shaw diz que o Natal é apenas uma conspiração mantida por donos de granjas e comerciantes de vinhos por motivos estritamente comerciais, então ele diz algo que não é tanto falso quanto é uma tolice notável e interessante. Ele poderia igualmente dizer que os dois sexos foram inventados por joalheiros que queriam vender alianças."

"Os homens não divergem muito sobre quais coisas eles consideram males; eles divergem enormemente sobre quais males eles consideram desculpáveis."

"Não é que não haja safados suficientes para maldizer; é que não temos bons homens suficientes para maldizê-los."

"Há um motivo para dizer a verdade; há um motivo para evitar o escândalo; mas não há defesa possível para o homem que faz o escândalo mas não diz a verdade."

"A verdade completa é geralmente aliada da virtude; uma meia-verdade é sempre aliada de algum vício."

"A verdade é sagrada; e se você disser a verdade muito freqüentemente, ninguém crerá nela."

"A idolatria é cometida não apenas ao erigir falsos deuses, mas também ao erigir falsos demônios; ao levar os homens a temerem a guerra, ou o álcool, ou as leis da economia, quando eles deveriam temer a corrupção espiritual e a covardia."

"A maior parte da liberdade moderna está enraizada no medo. Não é tanto que sejamos audazes demais para suportar regras; é que, ao contrário, somos tímidos demais para suportar responsabilidades."

"O mundo será muito em breve dividido, a menos que eu esteja enganado, entre aqueles que ainda prosseguem explicando nosso sucesso e aqueles, algo mais inteligentes, que estão tentando explicar nosso fracasso."

"Eu daria a uma mulher não mais direitos, mas mais privilégios. Ao invés de enviá-la a procurar tal liberdade como a que notoriamente prevalece em bancos e fábricas, eu projetaria especialmente uma casa em que ela pudesse ser livre."

"Selvagens e artistas modernos são igualmente e estranhamente compelidos a criar algo mais feio que eles próprios. Mas para os artistas isso é mais difícil."

"E ao redor do mundo todo a velha literatura, a literatura popular, é a mesma. Consiste em tristeza muito digna e diversão muito indigna. Seus contos tristes são sobre corações partidos, e seus contos felizes são sobre cabeças partidas."

"O que é chamado matriarcado é simplesmente anarquia moral, em que apenas a mãe permanece firme porque todos os pais são fujões e irresponsáveis."

"Nossos mestres materialistas poderiam implantar, e provavelmente implantarão, o controle de natalidade em um programa prático imediato enquanto estamos todos discutindo o terrível perigo de alguma outra pessoa implantá-lo em alguma Utopia distante."

"O propósito da educação compulsória é privar o povo comum de seu senso comum."

"Nós estamos aprendendo a fazer muitas coisas inteligentes; a próxima grande tarefa será aprender a não fazê-las."

"A posição que agora atingimos é esta: começando do Estado, tentamos remediar os fracassos de todas as famílias, todas as creches, todas as escolas, todos os seminários, todas as instituições secundárias que um dia tiveram alguma autoridade própria. Tudo é trazido, no fim das contas, aos tribunais. Estamos tentando impedir o vazamento tampando a parte de cima."

"Psicanálise é uma ciência conduzida por e para lunáticos. Eles estão geralmente preocupados em provar que as pessoas são irresponsáveis; e eles certamente obtêm sucesso em provar que algumas pessoas o são."

"Deixem todos os bebês nascerem, e então deixem-nos afogar aqueles dos quais não gostarmos."

"Poder-se-ia supor que liberdade religiosa significa que todos são livres para discutir religião. Na prática, significa que dificilmente alguém é autorizado a mencioná-la."

"O ateísmo é realmente o mais ousado de todos os dogmas, pois é a asserção de uma negativa universal."

"Progresso é Providência sem Deus. Ou seja, é uma teoria de que tudo tem dado certo perpetuamente por acidente. É uma espécie de otimismo ateísta, baseado em uma eterna coincidência muito mais miraculosa que um milagre."

"Há argumentos em favor do ateísmo, e eles não dependem, e nunca dependeram, da ciência. São sustentáveis o suficiente, até onde eles vão, sobre uma perspectiva geral da vida; ocorre apenas que é uma perspectiva superficial da vida."

"Há dois tipos de pacificadores no mundo moderno; e são ambos, embora de maneiras diversas, perturbadores. O primeiro pacificador é o homem que anda por aí dizendo que concorda com todos. Ele confunde a todos. O segundo pacificador é o homem que anda por aí dizendo que todos concordam com ele. Ele enfurece a todos. Os dois juntos produzem cem vezes mais disputas e distrações do que nós, pobres pessoas pugnazes, teríamos jamais pensado em nossas vidas."

"Há dois tipos de charlatães: o homem que é chamado de charlatão e o homem que realmente é um. O primeiro é o curandeiro que cura você; o segundo é a pessoa altamente qualificada que não o faz."

"Há dois tipos de revolucionários, como da maioria das coisas - um tipo bom e um mau. Os maus revolucionários destroem convenções apelando a novidades - modas que são mais novas que as convenções. Os bons o fazem apelando para fatos que são mais velhos que as convenções."

"Há dois tipos de pessoas: as que aceitam dogmas e sabem disso, e as que aceitam dogmas e não sabem disso."

"O soldado profissional ganha mais e mais poder na medida em que a coragem geral de uma comunidade declina."

"Não há realmente coragem alguma em atacar coisas velhas ou antiquadas, não mais que em oferecer-se para lutar com a avó de alguém. O homem realmente corajoso é aquele que desafia tiranias jovens como a manhã e superstições frescas como as primeiras flores. O único verdadeiro livre-pensador é aquele cujo intelecto é tão livre do futuro quanto do passado."

"Camaradagem é uma coisa muito diferente de amizade, pois amizade implica individualidade, enquanto camaradagem na verdade implica a subordinação temporária, se não a submersão temporária da individualidade. Amigos são melhores por serem dois; mas camaradas são melhores por serem dois milhões."

"Porque nossa expressão é imperfeita, nós precisamos de amizade para preencher as imperfeições."

"Liberdade é precisamente a última idéia que parece ocorrer a alguém ao considerar qualquer proposta política ou social. Basta que alguém, por alguma razão, alegue alguma evidência de algum mal em alguma prática humana, para as pessoas instantaneamente sugerirem que essa prática deveria ser suprimida pela polícia."

"O orgulho consiste em um homem fazer de sua personalidade o único critério, ao invés de fazer da verdade o critério. O cético se sente amplo o suficiente para medir a vida pelas coisas mais amplas, e termina medindo-a pela menor de todas."

"O ceticismo dos últimos dias adora chamar-se progressista; mas o ceticismo é na verdade reacionário. O ceticismo vai para trás; ele tenta desarranjar o que já foi assentado. Ao invés de tentar sulcar novos campos com seu arado, ele simplesmente tenta sulcar o arado."

"Nenhum filósofo cético é capaz de levantar quaisquer questões que não possam igualmente ser levantadas por uma criança cansada em uma tarde quente."

"A liberdade produziu o ceticismo, e o ceticismo destruiu a liberdade. Os amantes da liberdade pensaram que estavam tornando-a ilimitada, quando estavam apenas tornando-a indefinida. Pensaram que estavam apenas tornando-a indefinida, quando estavam na verdade tornando-a indefesa."

"O comerciante médio começou a ser agnóstico não tanto porque não sabia onde estava quanto porque queria esquecer. Muitos dos ricos foram tomados pelo ceticismo exatamente como os pobres o foram pela bebida: porque era uma rota de fuga."

17 de agosto de 2007

A ignorância em debate

O que vou escrever hoje é resultado de uma série de observações e experiências esparsas que fui reunindo, especialmente nos últimos meses, algumas das quais passo a expor e discutir sem qualquer preocupação com a cronologia. Falarei, de início, sobre uma conversa (ou, antes, um início de conversa) de que participei há cerca de seis meses com três amigos numa esfirraria da nossa cidade. Basta dizer que naquela mesma semana eu havia discordado de algo que um deles, o Nelson, dissera em seu blog acerca da Europa medieval; porém, enquanto eu me preparava para iniciar a defesa da minha posição com os argumentos que me pareciam apropriados, descobri que eles não seriam necessários, pois meu amigo, reconhecendo que conhecia o assunto muito menos que eu (é bom deixar claro: não porque eu soubesse muito e ele pouco, mas porque eu sabia alguma coisa e ele nada), convenceu-se imediatamente de que eu devia ter razão, e convenceu-se a ponto de reescrever o trecho contestado antes que mais alguém o lesse. Entretanto, ao comentarmos esse acontecimento com os outros dois amigos, entre uma esfirra e outra, o Nelson foi censurado por um deles, que alegou, citando e endossando uma famosa declaração de Albert Einstein, que nenhum conhecimento deve ser baseado na autoridade de quem quer que seja. O assunto rapidamente se desviou a partir daí, e a noite não era mesmo propícia a um debate intelectual sério. Posteriormente, entretanto, eu não perdi a oportunidade de ironizar a réplica do meu segundo amigo, alegando que me abstive de contestá-la porque não julguei ser sensato questionar a autoridade de Einstein.

No fim das contas, eu acredito que a atitude do Nelson foi muito acertada, e a reprimenda do meu outro amigo, a despeito de contar com o apoio do pai da relatividade, inteiramente infundada, por razões que pretendo esclarecer adiante. De qualquer forma, não se pode negar, penso eu, que esse acontecimento ilustra e resume, ainda que de maneira algo simbólica, algumas interessantes questões sobre o papel intelectual da autoridade. Trata-se de uma questão espinhosa, sobre a qual não tenho a menor pretensão de discorrer de maneira completa. Desejo apenas deixar anotadas certas considerações úteis, talvez, como introdução ao assunto.

O primeiro ponto a ser notado é que, ao discutir a possibilidade do conhecimento baseado em autoridade, não estamos falando de algo hipotético, e sim de algo presente e inevitável na vida de cada um. Portanto, se colocarmos a questão como se se tratasse de um objeto perfeitamente dispensável, uma nova modalidade de conhecimento destinada a complementar ou substituir todas aquelas de que já dispomos, estaremos simplesmente falseando a perspectiva do problema. Se prestarmos atenção à maneira pela qual viemos a aprender as coisas que hoje sabemos, mesmo aquelas que nos parecem mais intuitivamente evidentes ou racionalmente inabaláveis, veremos que pelo menos uma parte delas baseia-se, no fim das contas, apenas na autoridade de alguém (ou mesmo de muita gente) que consideramos digno de confiança para falar do assunto. Posso citar como exemplos de fatos que aceito com base na autoridade de outras pessoas os seguintes casos: a ocorrência de um golpe militar contra o governo de João Goulart em 1964, a existência da China, a forma elíptica das órbitas dos planetas e a validade do Teorema de Pitágoras. Jamais vi demonstrações cabais de qualquer desses fatos, e, no entanto, recuso-me a levar a sério qualquer um que me considere crédulo demais por causa disso. A autoridade de alguém está por trás de boa parte do que sabemos ou julgamos saber, e isso inclui também o que sabem ou julgam saber até os mais ferrenhos inimigos da autoridade, ainda que eles próprios não o percebam. E a não percepção desse fato resulta fatalmente em idéias quase tão absurdas quanto a de justificar o repúdio à autoridade recorrendo à opinião de alguém que entenda muito desses assuntos (fique claro, porém, que não era essa a intenção do meu segundo amigo; se fosse, eu não teria feito ironia alguma, e sim rompido em prantos).

Houve um tempo em que todo mundo era capaz de perceber o papel imprescindível que a autoridade deve exercer, na educação em geral, e na educação intelectual em particular. As pessoas tomavam como óbvio que para transmitir algum conteúdo a uma pessoa, não apenas é necessário saber mais que ela sobre o assunto em questão, como também é impossível justificar devidamente cada afirmação feita, e isso por causa da ignorância mesma do aluno sobre o assunto. Parte das teorias e práticas pedagógicas modernas, tão afeitas a conceitos deturpados de "igualdade" e "democracia" (digo de passagem que as propostas efetivamente implementadas de educação universal não me parecem outra coisa senão a democratização da burrice), parecem se basear justamente na ignorância ou mesmo na indisposição contra esse fato, como se a mera pretensão de saber mais que outras pessoas, por mais justificada que seja, não passasse de arrogância.

Isso nos traz de volta ao problema. O enfoque deste texto não é sobre o papel da autoridade na educação enquanto tal; a historinha que contei no início era, antes, sobre o papel da autoridade no debate. Ainda assim, tive boas razões para dizer o que disse no parágrafo anterior. É comum, embora não tanto quanto deveria, uma pessoa esquivar-se de participar de uma discussão alegando que não conhece suficientemente bem o assunto em questão. Ultimamente, porém, tenho me sentido mais freqüentemente inclinado a fugir da discussão pelo motivo inverso; e de fato já me recusei algumas vezes a debater certos assuntos, limitando-me a observar que meus interlocutores não tinham as capacitações intelectuais mínimas para tanto. Desconfio que as pessoas em questão sabiam que eu estava dizendo a verdade. Ainda assim, as reações mais freqüentes nesses casos são basicamente duas: ou a pessoa em questão profere um julgamento moral sobre a minha pessoa, acusando-me de arrogância ou presunção, ou me acusa de tentar substituir a argumentação válida por um mero apelo à autoridade, acusação essa que vem fatalmente acompanhada da primeira, já que a autoridade alegada é a minha própria. Não pretendo aqui fazer referência a nenhuma situação específica, mas menciono esses fatos por serem reveladores de alguns aspectos relevantes do problema que estou discutindo.

Participei, há cerca de dois anos, de um dos eventos mais ridículos da minha vida: tentei convencer um adolescente, estudante colegial, de que é possível conhecer a composição química das estrelas, coisa que ele considerava impossível. Meu fracasso foi rápido e completo, é claro. Mas, embora minha didática possa ter sido muito ruim, meus argumentos certamente não o eram. Ocorre apenas que meu colega, desconhecendo inteiramente as disciplinas necessárias à compreensão da técnica que eu estava tentando lhe explicar - astronomia, química, óptica, espectroscopia - , não tinha sequer condições de julgar os méritos dos argumentos que eu expunha. Já passei por essa situação outras vezes, tanto antes quanto depois, mas foi naquela noite que percebi esse fato importantíssimo: o ignorante completo, especialmente se o for a ponto de não ter sequer consciência de sua ignorância, leva indiscutível vantagem em qualquer discussão. Debater com ele é muito mais árduo que debater com alguém de conhecimentos comparáveis, ou mesmo significativamente maiores, justamente por sua capacidade de compactar em poucas frases uma quantidade imensurável de falsidades, contradições, simplificações e falácias, cuja explicitação e crítica numa linguagem acessível à sua mente fatalmente se tornam demasiado longas ou mesmo impossíveis. Mesmo que não haja da parte do ignorante qualquer desonestidade intelectual e que ele esteja sinceramente interessado em conhecer a verdade sobre o assunto (possibilidades que, nessas condições, considero bem pouco prováveis, mas adoto ao menos como hipóteses), o simples fato de ele portar-se como debatedor e não como ouvinte ou aluno já será um obstáculo quase instransponível a quem queira apresentar-lhe essa verdade.

O filósofo Olavo de Carvalho resumiu muito bem o problema ao dizer que "não há debate entre o conhecimento e a ignorância". Não por acaso, ele disse isso no contexto de uma discussão travada com Rodrigo Constantino, um sujeito que, embora escreva coisas interessantes sobre política e economia, desconhecia totalmente o assunto em pauta, que era a religião (em particular a tradição judaico-cristã), não sendo nada além de mais um típico ateuzinho que ainda leva a sério as bobagens proferidas por um charlatão tagarela como Voltaire. As sarcásticas considerações do Olavo sobre a mediocridade intelectual de seu oponente podem ter causado má impressão em muitos leitores, mas, tendo estado na mesma situação, não posso deixar de dar-lhe razão, principalmente se, como é provável, ele já tiver passado por essa situação muitas vezes em seus sessenta anos de vida. Eu mal cheguei aos vinte e três e minha paciência com esse tipo de coisa já não é a mesma de algum tempo atrás...

Espero que fique claro que o conteúdo deste post não só não se dirige a ninguém em particular, mas também vale como lembrete para mim tanto quanto para qualquer outra pessoa. Pois eu também sou falível, tanto no sentido de ainda me meter ocasionalmente a discutir assuntos sobre os quais não sei nada quanto no sentido, muito mais desagradável, de me meter a discutir assuntos que conheço com pessoas que o ignoram por completo. E cabe observar ainda que, comparando o ato de dizer a uma pessoa que ela está discutindo sem conhecer com o ato de discutir sem conhecer, não posso ver arrogância autêntica senão no segundo. O primeiro passo para a resolução de qualquer problema é o reconhecimento da existência do mesmo, e o homem que quiser se ver livre da ignorância sobre um assunto qualquer não tem escolha senão começar submetendo-se à autoridade de outro que sabe mais a respeito do tema. Se não houver um aprendizado prévio, se não existir a posse comum, entre os debatedores, do conjunto de conhecimentos necessários à compreensão da questão discutida, não existe debate verdadeiro, mas apenas retórica (em algum sentido da palavra) ou uma aula disfarçada e provavelmente sem sucesso.

Por conseguinte, o ignorante não deve tentar debater em hipótese alguma, pois sua simples participação inviabiliza a própria existência do debate. Não pretendo voltar a participar desse tipo de evento, a menos que eu queira exercitar minhas habilidades retóricas ou ensinar algo ao meu interlocutor, pois essas são as únicas possibilidades concretas. Assim, quando eu lhe disser que não é possível debater o assunto com ele, não estarei anunciando uma decisão minha, e sim um fato constatado como inelutável. E também não estarei recorrendo ao argumento da autoridade; mesmo o uso falacioso desse argumento requer também, em primeiro lugar, a existência de um debate.

7 de agosto de 2007

Terceira colheita

Já é tempo de comentar brevemente certas reações geradas por alguns de meus posts nos últimos tempos. Limitar-me-ei aqui, como de costume, a prestar alguns esclarecimentos que julgo necessários a respeito de meus textos, deixando de lado as conversas que, embora muito interessantes e motivadas pelos mesmos, acabaram se desviando demais do assunto principal.

Em seu comentário ao meu post A trindade na diversidade, meu amigo Marco levantou a hipótese de que as três correntes mencionadas (evolucionismo, criacionismo e design inteligente) podem perfeitamente conter, cada uma delas, uma parcela de razão. Não posso discordar dele nesse ponto, pois me parece que é isso mesmo o que ocorre. Mas é consideravelmente difícil discorrer sobre o grau de correspondência de cada uma com a realidade, e a principal causa dessa dificuldade reside, como apontei no próprio texto, no fato de que cada uma das três vertentes possui um grande número de subdivisões. Não se pode, por exemplo, impugnar alguma versão não-darwiniana do evolucionismo a partir de argumentos específicos contra as correntes darwinistas, assim como não se podem apresentar evidências da antiguidade do planeta senão contra os criacionistas que interpretam os dias da criação no Gênesis em sentido estritamente literal. É impossível, portanto, sustentar uma discussão séria no nível dos fatos da natureza (ou mesmo dos princípios metodológicos da investigação) sem levar em conta essas muitas particularidades das opiniões de cada indivíduo ou grupo que defende uma posição sobre o assunto. Não fiz nada disso no meu post, pela simples razão de que não era meu objetivo avaliar, de maneira geral ou específica, os méritos relativos de cada concepção, e tampouco fornecer qualquer descrição dos argumentos utilizados por cada uma. Eu pretendia apenas definir apropriadamente os termos que designam os grupos mais amplos envolvidos no debate, de forma que qualquer indivíduo que tenha uma opinião sobre o assunto possa, em última análise, ser encaixado em um dos três sem ambigüidades. Esse é um problema que me esforcei para resolver, e creio que agora o consegui. Mas não tenho tanta certeza disso, pois um amigo me informou durante uma conversa que Francis Collins, coordenador do famoso Projeto Genoma Humano, defende em seu livro recém-publicado, The language of God, uma concepção que se distingue de todas as três que apresentei aqui. Como eu ainda não li o livro e meu amigo não pôde me dar informações mais detalhadas porque também não havia terminado a leitura, não posso me pronunciar a respeito por enquanto, e limito-me agora a prometer que retornarei ao tema num post futuro se constatar que a minha classificação tripartidária se tornou desatualizada, ou se houver mais algo interessante a ser dito sobre o tema.

Enquanto isso não ocorre, o que convém assinalar é que, com relação aos pontos específicos que utilizei na distinção entre os três grupos, dizer que todos estão certos ou parcialmente certos parece-me uma pura impossibilidade lógica, já que eu defini os termos justamente de modo a eliminar essa possibilidade. Há duas alternativas: ou a evolução se deu sob processos inteiramente naturais ou não. No primeiro caso, o evolucionismo é verdadeiro; no segundo, temos duas opções: ou o exame científico dos objetos inteligentemente projetados permite inferir legitimamente algo sobre seu projetista ou não. No primeiro caso, o criacionismo é verdadeiro; no segundo, é verdadeiro o design inteligente. Não vejo como escapar a essa conclusão. Ainda assim como apontei anteriormente, a questão levantada pelo Marco permanece válida no seguinte sentido: se tomarmos as opiniões defendidas por algum cientista envolvido nessa controvérsia (qualquer que seja a posição fundamental defendida por ele) em sua totalidade, e não apenas em relação a esses dois pontos específicos, é óbvio que muito do que ele disser será aproveitável. Ou seja, embora nos pontos distintivos um dos grupos esteja necessariamente certo e os outros dois necessariamente errados, isso não impede que cada um tenha muito a aprender com os demais.

Ainda sobre esse mesmo texto, meu amigo Nelson fez um comentário que se relaciona muito de perto com uma questão mais ampla sobre a qual ainda pretendo escrever mais detalhadamente. Ele leu num artigo da Wikipédia que a hipótese da complexidade irredutível, desenvolvida pelo bioquímico Michael Behe contra a onipotência dos processos evolutivos naturais e a favor do design inteligente, já foi refutada. Sem entrar, por enquanto, na discussão propriamente científica dessa questão, farei duas observações que considero úteis. A primeira é que os argumentos do design inteligente não se limitam à tese da complexidade irredutível. E a segunda é que, lendo o artigo indicado por meu amigo (este aqui), constatei algo bastante interessante, embora não inédito. O artigo afirma, citando a sentença do famoso julgamento de Dover, que "a reivindicação do professor Behe em favor da complexidade irredutível foi refutada em artigos de pesquisa revistos por pares e rejeitada pela comunidade científica em larga escala". Mas, um pouco abaixo, afirma que o design inteligente "não é falseável, não é empiricamente testável". Ninguém parece se incomodar com o fato de que essas duas afirmações contradizem-se mutuamente. A primeira implica que o design inteligente é algo cientificamente demonstrável como falso, enquanto a segunda implica que, não satisfazendo o critério erigido por Karl Popper para distinguir o que é ciência do que não é (segundo esse renomado filósofo, a ciência define-se por lidar com proposições que podem, em princípio, ser refutadas), o design inteligente não é sequer passível de investigação científica. O artigo sustenta, portanto, que o design inteligente possui ambos os defeitos: é algo tão anticientífico que não pode ser refutado, e no entanto conseguiu sê-lo mesmo assim. Não acho que seja injusto dizer que isso no mínimo cheira a empulhação. Algum dia vou dedicar um post a considerações mais aprofundadas sobre o comportamento da comunidade científica diante de teorias minoritárias, especialmente quando estas defendem posições ideologicamente indesejáveis (como o design inteligente e a negação do aquecimento global antropogênico), e veremos que não é muito diferente disso. Porém, levando em conta que o alvo imediato é apenas um artigo da Wikipédia, o espaço que lhe dediquei já é suficiente.

Depois que publiquei o post A mais grandiosa das aventuras em resposta à pergunta de um amigo sobre a relação entre a soberania de Deus e a liberdade do homem, a discussão entre nós dois continuou por e-mail; e parece que, depois de termos em parte aprofundado e em parte desviado o assunto, finalmente consegui convencê-lo da validade da posição que defendi. Não vou entrar em detalhes sobre a nossa discussão, mas há um ponto levantado por meu amigo que considerei digno de esclarecimento. Ele perguntou se o que eu disse sobre o erro de usar termos temporais em referência a eventos ocorridos fora do tempo não seria, contrariamente ao que eu disse no final do post, um posicionamento contra a doutrina da predestinação. A resposta é não. O que eu disse não deve ser entendido como uma referência à mera raiz lingüística da palavra. Existe uma diferença conceitual importante entre a idéia da predestinação (ou, em geral, dos decretos divinos) e a idéia de que "Deus já sabe o que vai acontecer". Neste segundo caso há uma referência temporal insuperável, enquanto no primeiro isso não ocorre. Embora etimologicamente a palavra indique uma referência ao passado, o conceito que ela descreve não o faz; da mesma forma, usamos a palavra "átomo" para denotar um objeto facilmente divisível em nossas usinas nucleares. De qualquer forma, minhas considerações sobre o tempo foram apenas um esclarecimento introdutório destinado a prevenir meu trabalho posterior contra a ignorância de certos leitores potenciais (o que não inclui esse meu amigo). O argumento principal só foi analisado a partir do quinto parágrafo, conforme eu reconheci ali mesmo ao dizer: "Parece que, mesmo deixando de lado a questão cronológica, que é mera infantilidade, resta ainda um problema lógico que merece consideração mais atenta."

Devo ainda fazer algumas pequenas ressalvas sobre meu post Diálogo sobre as mortes, no qual fiz alguns comentários ao texto Athrabeth, de Tolkien. O primeiro é que, no segundo parágrafo, falando sobre as duas traduções disponíveis, respectivamente, nos sites Valinor e Duvendor, eu afirmei: "A primeira está melhor [...] e possui algumas notas, de modo que a utilizarei em eventuais citações." Porém, eu escrevi o restante do post e acabei não fazendo citação alguma. Devo, portanto, retratar-me por não ter revisado esse trecho antes de publicar o texto. Além disso, tendo lido o Athrabeth já há um bom tempo, não me lembrei do conteúdo da segunda nota, escrita pelo próprio autor: "Isto seria por volta do ano 409 da Longa Paz. Nesse época Belemir e Adanel eram idosos na medida dos Homens, tendo cerca de 70 anos de idade; mas Andreth estava na plenitude do vigor, ainda não tendo 50." No texto eu afirmei que o diálogo não tinha data bem definida, no que obviamente me equivoquei, embora eu tenha acertado ao dizer que "certamente não foi muito antes do ano 455 da Primeira Era do Sol". Da mesma forma, errei ao dizer que Andreth já era idosa na ocasião, embora de fato já não fosse jovem.

Finalmente, recebi há pouco de um certo Fernando um comentário acerca das cartas de Lewis e Vanauken. Ele parece achar um absurdo que a religião cristã, a despeito de sua apologia da humildade, tenha a pretensão de declarar-se verdadeira. Não tenho idéia de quem seja esse tal Fernando, e não tenho meios de entrar em contato privado com ele, de modo que terei de responder-lhe aqui mesmo. Mas antes lhe faço um aviso: se quiser continuar a discussão, queira ter a gentileza de me enviar seu endereço de e-mail ou algo do tipo, pois eu só dedico posts a responder comentários dos meus leitores, como estou fazendo hoje, em média uma vez a cada não sei quantos meses.

Eu disse que o Fernando comentou as cartas de Lewis e Vanauken, mas a realidade não é bem essa. O que ele fez foi comentar duas palavras que encontrou nelas, "humildade" e "verdade", associando-as de uma maneira totalmente arbitrária do ponto de vista do próprio texto, embora bastante comum entre os pseudocéticos de hoje em dia. Ele parece achar que um sujeito humilde (pelo menos intelectualmente falando) é alguém que jamais se sente no direito de afirmar coisa alguma. Ora, essa pode ser a pretensa humildade dos agnósticos (à qual ainda vou dedicar um post qualquer hora dessas), mas não tem nada a ver sequer com a humildade socrática, e muito menos com a cristã. Não sei bem como explicar a esse sujeito em poucas palavras o que é a autêntica humildade cristã, mas acho que posso dar ao menos dois passos nesse sentido. O próprio Fernando concluiu seu comentário com as seguintes palavras: "O único Lewis que trouxe algo de novo e importante para o mundo foi mesmo o Gilbert Newton, os outros nada..." Para ter o direito de dizer isso, naturalmente, ele deve não apenas conhecer razoavelmente bem a vida e o pensamento de C. S. Lewis, mas também de todos os Lewis razoavelmente famosos que existem. Se não conhece, então o próprio Fernando torna-se o contra-exemplo perfeito da humildade intelectual. É claro que não o estou acusando de nada, já que nem o conheço; esse é um exemplo hipotético que ele pode perfeitamente contestar como inverídico, e espero que o faça, mas ainda assim permanece como boa ilustração. Se isso não serve para esclarecer o que os cristãos entendem por humildade, passo então ao passo seguinte, que é simplesmente transcrever estas esclarecedoras considerações, embora breves, de um grande escritor cristão (e ex-agnóstico), G. K. Chesterton:

"Mas o que sofremos hoje é a humildade no lugar errado. A modéstia saiu do órgão da ambição e fixou-se no órgão da convicção, onde nunca deveria estar. Um homem deveria estar duvidoso acerca de si mesmo, mas confiante acerca da verdade; isso foi inteiramente invertido. Hoje em dia a parte do homem que ele afirma é exatamente a parte que ele não deveria afirmar: ele próprio. A parte da qual ele duvida é exatamente a parte da qual ele não deveria duvidar: a Razão Divina. Huxley pregou uma humildade que se contentava em aprender da natureza. Mas o novo cético é tão humilde que duvida que possa aprender. Assim, estaríamos errados se disséssemos apressadamente que não há uma humildade típica do nosso tempo; apenas acontece que é, na prática, uma humildade mais venenosa que as mais selvagens prostrações do asceta. A velha humildade era uma espora que impedia o homem de parar, não um prego na bota que o impedia de prosseguir. Pois a humildade fazia o homem duvidar de seus esforços, o que poderia fazê-lo trabalhar mais. Mas a nova humildade leva o homem a duvidar de suas metas, o que o fará suspender completamente o trabalho."

5 de agosto de 2007

Os estranhos caminhos da paz

Já perdi a conta de quantas histórias ouvi sobre missionários cristãos engajados em missões transculturais, seja em civilizações do Oriente, seja entre povos primitivos a ponto de viverem num estado de completa barbárie, seja em países abertamente hostis ao cristianismo. Essas narrativas fazem parte da minha vida e da minha memória praticamente desde que me tornei capaz de prestar atenção a aulas e preleções (embora ainda hoje eu tenha grandes dificuldades em fazer isso sem me distrair uma dezena de vezes). Livros específicos sobre o tema, porém, eu não li muitos. Mas nenhum dos que li me impressionou tanto quanto O totem da paz (cujo título original, muito mais apropriado, aliás, é The peace child). Posso dizer sem hesitação que esse foi um dos livros de influência mais decisiva sobre os rumos da minha formação pessoal. Creio que isso se deve em parte ao fato de eu tê-lo lido aos 15 anos, quando minha vida intelectual ainda não havia sequer começado, de modo que aprendi ali várias coisas que poderia perfeitamente ter aprendido em outros lugares. Algum dia talvez eu escreva um texto sobre livros que chegam a mim na hora errada; acredito, por exemplo, que teria apreciado Júlio Verne muito melhor se o tivesse lido aos doze anos, e não aos dezoito. Mas voltemos ao assunto. Minha intenção original era dar aqui um breve resumo dessa obra e explicitar algumas lições importantes que aprendi com ela. Porém, logo descobri que isso é serviço demais para um único post. Sendo assim, vou me limitar a contar a história hoje, deixando a análise da mesma para uma oportunidade futura.

O autor do livro é o canadense Don Richardson, e a história narrada é a sua própria. Tendo se convertido ao cristianismo na adolescência, ele decidiu dedicar sua vida à pregação do Evangelho, e com esse intuito se matriculou no Prairie Bible Institute, um centro de treinamento missionário localizado na cidadezinha canadense de Three Hilla. Ali, em 1955, aos vinte anos, ele ouviu falar pela primeira vez nas centenas de povos primitivos da parte ocidental da Nova Guiné Holandesa (atualmente um país independente, a Nova Guiné Papua). Depois de um longo período de preparação, Richardson finalmente chegou em 1962 à Nova Guiné, acompanhado de sua esposa Carol e seu filho Stephen, então com um ano e meio. Foi viver então entre os sawis, um povo que jamais tivera qualquer contato prolongado com o homem branco, e cujas relações mesmo com outros povos nativos dos arredores era bastante dificultosa. E na medida em que ia vivendo ali, tentando aprender a língua e compreender a mentalidade de seus novos vizinhos, num esforço para penetrar no mais íntimo do espírito daquelas pessoas, o missionário foi vendo e percebendo coisas absolutamente surpreendentes.

Para começar, posso dizer que os sawis são canibais e colecionadores de cabeças. Na verdade, nada há de surpreendente nisso; é algo até corriqueiro por aquelas bandas. Talvez até fosse difícil lembrar disso diante da calorosa e honrosa recepção que os forasteiros tiveram, mas logo a verdadeira natureza daquele povo se revelou. Aquela sociedade cultuava a violência e utilizava-a freqüentemente como a única maneira conhecida de resolver suas pendências. A própria maneira pela qual os sawis educavam seus filhos já bastava para incentivar a agressividade, o orgulho e a vingança como modos essenciais de ser, sem os quais, aliás, qualquer indivíduo tornar-se-ia vítima fácil de seus inimigos, ou mesmo de seus amigos. Os sawis, porém, não se limitavam a venerar a brutalidade, a crueldade e o rancor, mas elevavam-nas ao status de uma autêntica arte. As tradições desse povo estavam repletas de histórias de vingança requintadas pela traição. Matar sumariamente o ofensor e comer seus miolos era algo que qualquer um podia fazer, e era por isso mesmo que as pessoas o faziam com freqüência relativamente alta. Mas as grandes vinganças, aquelas dignas de lembrança pelas gerações futuras, eram as precedidas pelo perdão aparente, pela conquista da confiança do adversário. Como diziam os próprios sawis, é como criar e engordar porcos tendo em vista um futuro banquete. O ideal de todo sawi era fazer o mesmo com seus inimigos, exatamente o mesmo, inclusive no que diz respeito ao banquete.

O resultado disso é óbvio, e pode ser perfeitamente compreendido à luz daquilo que dizia o político, historiador e jornalista (dentre outras coisas) francês Alain Peyrefitte: o fator mais decisivo para o progresso de uma comunidade é a mútua confiança entre seus membros. No mundo dos sawis tal confiança era praticamente inexistente, como não poderia deixar de ser, pois ninguém podia estar absolutamente seguro da sinceridade dos demais, e mesmo uma sinceridade autêntica poderia transformar-se em fúria repentina por motivos absolutamente insignificantes, dado o caráter eminentemente agressivo, irritadiço e orgulhoso dos indivíduos sawis. Não podia haver confiança plena, pois nenhuma prova de confiança poderia, em última análise, ser considerada suficiente. Somem-se a isso alguns fatores culturais altamente promissores enquanto fomentadores de discórdia, como a poligamia, e o resultado é simplesmente catastrófico. Parece que os sawis só puderam salvar-se do completo aniquilamento porque suas interações sociais eram reduzidas ao mínimo necessário: viviam dispersos em aldeias pequenas e distantes entre si tanto quanto possível, raramente entrando em contato umas com as outras. Apenas a chegada dos brancos (e dos benefícios que os acompanharam, naturalmente) foi capaz de fazer com que membros de duas aldeias consentissem em morar juntos. (Esqueci de dizer lá em cima, mas os sawis eram seminômades.)

A questão, porém, é: haveria de fato alguma possibilidade de sucesso por parte de Richardson? Não estaria ele agindo como um maluco ao mudar-se para um local tão inóspito, com sua mulher e seu filhinho, esperando que aquelas pessoas abdicassem de seu modo de vida hediondo, embora talvez milenar? Poder-se-ia de fato esperar que um povo inteiro, tendo aprendido, exercitado e valorizado deliberadamente a violência, a crueldade, a falsidade e tudo o que há de mais perverso na natureza humana, passasse de repente a prezar os valores diametralmente opostos da moral cristã? Seriam os sawis capazes de dar importância à notícia de um evento ocorrido há quase dois milênios numa terra que eles jamais sonharam existir? Seriam sequer capazes de ver algum sentido nisso? Um povo tão afeiçoado à traição enxergaria algum valor nos atos de Jesus em contraste com os de Judas Iscariotes? Foram essas as questões que passaram a assaltar Don e Carol na medida em que conviviam com aquela gente e iam presenciando diariamente cenas de violência gratuita. Ao compreender a língua e os costumes dos sawis, seu caráter e, finalmente, suas tradições, o ânimo dos missionários degenerou gradualmente numa compaixão impotente, acompanhada, naturalmente, por uma avassaladora sensação de fracasso.

Essa sensação se agravou quando eles perceberam que, mesmo involuntariamente, sua presença era uma fonte constante de discórdia, já que foi por causa deles que as duas aldeias passaram a compartilhar o mesmo território, tornando assim muito mais freqüentes as lutas e os ferimentos que de outra forma seriam apenas esporádicos. Desolados, os dois canadenses se deram conta de que, além de não obterem progresso algum, estavam agravando a situação pelo simples fato de estarem ali. Os combates, embora constantes, ainda não haviam resultado em mortes; felizmente, pois isso daria início a um ciclo de retaliações mútuas que provavelmente se estenderia por várias gerações. Assim, para evitar que tal coisa acontecesse, Richardson e sua esposa decidiram, cheios de pesar, que o melhor a fazer era reconhecer abertamente o fracasso da sua missão e ir embora dali.

O que se seguiu é apenas mais um exemplo daquelas curiosas situações que a vida nos apresenta, nas quais só conseguimos alguma coisa depois que desistimos de consegui-la. No momento mesmo em que anunciou aos sawis que iriam embora para evitar derramamento de sangue, Richardson descobriu o inesperado: os selvagens na verdade possuíam, sim, um método infalível, embora doloroso, de promover a paz completa e sem desconfiança; e decidiram usar esse método extremo apenas quando perceberam que essa era a única maneira de impedir a partida dos missionários. O método era simples, assim como a lógica subjacente ao mesmo: a única maneira de assegurar um estado de coexistência plenamente pacífica consiste em entregar um filho ao inimigo. Sim, pois o homem que faz isso está ao mesmo tempo demonstrando confiança irrestrita e provando ser ele próprio digno de receber em troca essa mesma atitude. Isso é, como eu disse, muito doloroso, pois os pais sawis, apesar de tudo, amam seus filhos, como qualquer ser humano faria. Mas bastou que um pai de cada aldeia levasse seu filho e o colocasse sob os cuidados de um guerreiro da aldeia adversária, e todas as disputas terminaram.

Foi assim que Don e Carol contemplaram, quase incrédulos, a cessação súbita não apenas de todos os atos de violência entre os membros das duas aldeias, mas também de todos os rancores e mágoas resultantes de contendas anteriores, e mesmo de qualquer indisposição ou cara feia. Homens que no dia anterior estavam prontos a matar um ao outro agora sorriam afavelmente e trocavam presentes, sem falsidade e sem medo. Tudo isso por causa de dois bebês cujas vidas agora eram sagradas, e que os novos anfitriões protegeriam com mais ardor que às de seus próprios filhos. Os sawis dão a cada um deles o nome de tarop tim - um filho da paz. Contra ele não haverá traição; atentar contra a vida de um tarop tim é o pior crime que se pode cometer no universo dos sawis. E, enquanto ele viver, a paz entre as duas partes reconciliadas está garantida. Do ponto de vista da antropologia cultural isso talvez não passe de mera curiosidade ou problema científico. Mas não pareceu assim a Don e Carol Richardson; foi graças a isso que eles puderam permanecer entre aqueles que já haviam aprendido a amar, e foi também graças a esse estranho acontecimento que puderam, mais tarde, falar àqueles nativos sobre Alguém que um dia também propôs uma reconciliação enviando seu Filho para viver no meio de seus inimigos.