31 de agosto de 2012

Fragmentos de razões - parte 1

Dentre os comentários que recebo neste blog, com exceção de uns poucos que, por motivos diversos, não vejo proveito em publicar, há aqueles aos quais respondo com rapidez razoável e há os que passam meses ou anos sem receber resposta. A razão de tal demora geralmente reside no fato de que os comentários levantam objeções ao que digo, ou reflexões a respeito, ou ainda perguntas, que exigem mais que o que julgo apropriado fornecer na própria caixa de comentários, de modo que prefiro dar-lhes tratamento adequado em postagens novas e mais elaboradas. O problema é que, como meu tempo para escrever é sempre mais curto do que eu gostaria, algum assunto novo (digo, novo aqui no blog) quase sempre chama minha atenção antes que eu redija tais respostas, e assim elas vão sendo adiadas indefinidamente. Um bom exemplo disso aconteceu com um comentário feito no post Areias invasoras, em janeiro de 2009, ao qual respondi em uma série de três postagens, a última das quais foi publicada há apenas dois meses. Não sei a quantos comentários interessantes deixei de responder ultimamente, mas certamente superam uma dezena e, pelo meu levantamento preliminar, a maior parte se concentra em torno das minhas três séries de postagens que tratam, de alguma forma, do racionalismo no meio reformado: O direito ao mistério (partes um, dois, três e quatro), Sutilezas causais (partes um, dois, três e quatro) e O irracional dos racionalismos (partes um, dois, três, quatro e cinco). Na verdade, uma parte das questões interessantes levantadas nos posts mais antigos foi, assim espero, esclarecida nos mais recentes. Ainda assim, há pontos específicos, de graus variados de importância, acerca dos quais fiquei devendo respostas a várias pessoas.

Por isso, decidi começar hoje uma série de postagens destinada a lidar com esses pontos, sem intenção de me delongar no que já expliquei. Trata-se de um empreendimento bastante informal e livre, pois a natureza algo fragmentária do objeto não exige nada mais que isso. Não sei, portanto, qual será o tamanho ou a duração desta série, e tampouco tenho planejado de antemão tudo o que vou dizer. Naturalmente, nem tudo interessará a todos, e é bem possível que algumas coisas não interessem a ninguém além daquele a quem se dirigem em primeiro lugar. Mas cabe a cada leitor em potencial decidir o que vale a pena ler. A mim cabe apenas fornecer as respostas que prometi. E vou começar por aquele a quem devo mais e há mais tempo: meu querido irmão Jorge, que teceu comentários relevantes em três dos meus posts sobre o tema, a começar pelo primeiro deles, a primeira parte da série O direito ao mistério, em que teci críticas a um artigo Crampton em outubro de 2010. Depois de tecer alguns elogios, o Jorge disse:

"Porém (sempre há um porém), sabe que discordo de algumas de suas posições, e essa história de mistério e paradoxo veio bem a calhar para que o compreenda melhor. De cara, coloco a minha posição: não acredito em paradoxo na Bíblia. Como ela é infalível, inerrante e divinamente inspirada, crer nisso significaria acreditar que Deus quis que caíssemos em 'pegadinhas', ou então orientou desleixadamente os seus autores. Para o Deus sábio, santo e perfeito, isso seria impossível. Por isso, mesmo que eu não entenda e compreenda certas questões nela descritas (e é possível que eu não entenda muitas coisas por simples incapacidade intelectual, e a minha incapacidade intelectual não a tornará num livro de paradoxos), jamais afirmarei que existem antinomias na Bíblia."

Aproveitando, pois, a oportunidade de me explicar melhor à luz da declaração de posicionamento do Jorge, começarei dizendo que concordo que Deus não "quis que caíssemos em 'pegadinhas'", mas não pelo motivo apontado. Aliás, o uso da palavra "pegadinha" é bastante revelador, pois sugere que alguém induziu alguém ao erro - no caso, pela sugestão de que há uma solução filosófica completa para um problema que é insolúvel, de modo que os que acreditam na sugestão estão condenados a buscá-la à toa. Concordo com o Jorge quando diz que Deus não fez isso. A diferença entre nós é esta: o Jorge nega a "pegadinha" dizendo que a solução filosófica completa está disponível, e só não a vê quem tem compromissos filosóficos antibíblicos com o conceito de liberdade - que ele vê como sinônimo de autonomia, no sentido que Cornelius Van Til (mas não só ele) dava ao termo. Eu, por outro lado, digo que não há "pegadinha" porque Deus não só não forneceu essa solução filosófica completa, mas também não nos prometeu que ela estaria disponível. Com base nisso, devolvo a acusação dizendo que a insistência de que tal promessa foi feita é que se baseia em um compromisso antibíblico; no caso, com o ideal cartesiano de "clareza e distinção". Como apontei na terceira parte da mesma série, que o Jorge ainda não lera ao escrever seu comentário, Crampton errou ao atribuir nuances racionalistas a termos bíblicos como "verdade", "sabedoria" e conhecimento", e é só com base nesse erro que se poderia reclamar de uma suposta "pegadinha" divina.

A alternativa proposta pelo Jorge - "ou então orientou desleixadamente os seus autores" - padece do mesmo problema: dizer que algo foi feito desleixadamente só faz sentido à luz de uma comparação entre o resultado obtido e o pretendido. Em última análise, a acusação só teria sentido se Deus tivesse o propósito (ou a obrigação) de revelar tudo de modo "claro e distinto". Mas do fato de que alguns de nós desejam conhecer certas coisas dessa forma não se segue que Deus deseja ou é moralmente obrigado a nos prestar um relatório a respeito delas. Mas já escrevi sobre isso de modo mais amplo em textos posteriores.

Com respeito à última sentença do parágrafo citado, desejo esclarecer que concordo com o Jorge, se por ela se entender que a realidade criada não é incoerente aos olhos do próprio Deus. Mas a formulação do Jorge possui uma ambivalência que é importante trazer à luz: do fato de que a realidade é coerente aos olhos de Deus não se segue que o será também aos nossos olhos, nem mesmo potencialmente. Os irmãos de índole racionalista cujas posições tenho criticado aqui tendem a concentrar suas atenções nos aspectos formais da razão, consideradas de modo um tanto abstrato, identificando a inteligência com a faculdade analítica que é, na verdade, apenas um de seus aspectos. A existência de mistérios é um fato, seja nas Escrituras ou na revelação geral, não só, ou não tanto, por uma questão de aplicabilidade ou não das leis da lógica, mas porque o método analítico só pode atuar com segurança naquelas realidades das quais o investigador tem uma experiência profundamente concreta.

Voltarei a esse ponto ao discorrer sobre o parágrafo seguinte do comentário do Jorge. Convém, no entanto, repetir agora algo que mencionei também na terceira parte da série: considero errôneo o entendimento de Crampton de que a declaração de Isaías 55 sobre os pensamentos de Deus indica apenas uma diferença quantitativa, e não qualitativa. Esse desacordo tem seus efeitos no que estamos discutindo agora. Mas, como já demonstrei que o argumento de Crampton para sustentar sua tese é pífio, e ninguém até agora apresentou um melhor, limito-me a registrar a pertinência desse desacordo.

Antes de passar ao próximo parágrafo, cabe um breve comentário sobre esta honesta admissão do Jorge, feita de modo parentético: "é possível que eu não entenda muitas coisas por simples incapacidade intelectual, e a minha incapacidade intelectual não a tornará num livro de paradoxos". Tal humildade é louvável. Mas não vejo razão que exclua a possibilidade de, com respeito a alguns conteúdos da revelação bíblica, ou mesmo da revelação geral, a incapacidade intelectual do Jorge ser também a de toda a humanidade. E, uma vez concedida essa possibilidade, não vejo como evitar a possibilidade de que essa incapacidade universal seja constitutiva, e não contingente. Se tudo isso é possível - e deve ser considerado possível, pois nada prova o contrário - segue-se justamente aquilo de que falei acima: existem aspectos da realidade revelada que podem ser coerentes do ponto de vista divino sem que possam sê-lo do ponto de vista humano. Sendo assim, esses aspectos nos aparecerão como mistério. Ou seria paradoxo lógico? É disso que o Jorge trata no parágrafo seguinte:

"Veja bem, o título da sua série de postagens é O direito ao mistério, mas não acredito que 'mistério' seja o equivalente a paradoxo. Mistério se refere ao oculto, ao meu ver, algo que não foi revelado, que não nos foi dado conhecer. Paradoxo é afirmar duas coisas que se contradizem. É claro que alguém poderá reconhecer no mistério um paradoxo e no paradoxo um mistério, mas o fato é que a Bíblia se refere a 'mistério' como algo não somente incompreensível, mas algo que não nos foi revelado por Deus. Então, será que ao usar o termo 'mistério' você não estaria, ainda que não propositadamente, afirmando que não há o direito ao paradoxo? (rsrs). Mas se estiver enganado, corrija-me, por favor."

Passemos, pois, aos esclarecimentos terminológicos. Devo dizer que estou ciente de que existem na literatura teológica definições e distinções, às vezes conflitantes, para termos como "mistério", "paradoxo" e "antinomia". Contudo, não estou muito por dentro dessas discussões, de modo que não pretendo assegurar que meu uso dos termos está de acordo com o jargão da área. Quanto à Bíblia, faz tempo que li em algum lugar, já não me lembro onde, que o termo grego neotestamentário traduzido como "mistério" não possui nenhuma das duas acepções indicadas pelo Jorge, e sim apenas a de algo que não havia sido revelado no Antigo Testamento, mas que o foi na nova dispensação, em Cristo. Não sei se isso é verdadeiro em todos os casos, mas me parece coerente com os textos de que consigo me lembrar no momento. Contudo, não considero isso relevante, pois em meus posts eu não estava usando a palavra no sentido bíblico - dizendo com mais precisão, no sentido usado nas traduções da Bíblia para o português -, e nem me sinto na obrigação de fazê-lo, pois isso não tornaria minhas ideias nem um pouco mais bíblicas.

Para entender o que entendo por mistério, é necessário levar em conta algo que declarei na última parte da série O irracional dos racionalismos: "o fato de duas proposições terem sido reveladas não impede de modo algum que uma verdade fundamental para a harmonização entre elas tenha permanecido oculta". Havendo tal limitação, tem-se aquilo que chamo de mistério e, havendo mistério, nossa tentativa de articular filosoficamente os dados da revelação desembocarão inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, em um "paradoxo lógico". O paradoxo é, pois, apenas a manifestação mais superficial, no plano analítico, da realidade subjacente que é o mistério. Poder-se-ia dizer que o mistério consiste em uma falta de dados, mas dizer isso já seria ceder em parte ao racionalismo, pois a palavra "dados" carrega uma conotação que diz respeito primariamente a conteúdos restritos ao campo da razão analítica, ao passo que, como esclareci alguns parágrafos acima, me refiro antes a uma falta de experiência direta da realidade sobre a qual falamos, a qual diz respeito a todo o nosso ser, e não apenas à razão. Por isso prefiro falar em "direito ao mistério" em vez de "direito ao paradoxo": não por negar este último, mas porque este se baseia no primeiro, e o racionalista, por força de suas próprias ênfases distorcidas, perde isso de vista.

A investigação histórica é um empreendimento que lida o tempo todo com mistérios, no sentido que atribuo ao termo, mesmo quando não há nisso nenhuma implicação especificamente teológica ou espiritual. Por geralmente não fazer parte do ambiente histórico e cultural concreto que estuda, o historiador dispõe de fontes de informação relativamente escassas sobre aquilo que investiga. Por isso, pode perfeitamente não ser capaz de resolver certas contradições entre os dados que recebe, ainda que sejam todos verdadeiros, e é de se esperar que isso aconteça. Assim, por exemplo, Mateus 27.5 nos informa que Judas Iscariotes se enforcou, mas Atos 1.18 nos diz que ele morreu partido ao meio. É possível, nesse caso, imaginar várias maneiras pelas quais esses relatos podem ser harmonizados. Porém, ainda que não conseguíssemos imaginá-las, o que também acontece em alguns casos (bíblicos ou não), o ateu que acusa a Bíblia de contradição não estaria justificado, justamente por lhe faltar a percepção de que tais obscuridades são intrínsecas ao distanciamento histórico, e não necessariamente uma falha no objeto estudado. E, de qualquer forma, o ato mesmo de imaginar soluções mostra que o grau de coerência que podemos obter não depende só da qualidade de nosso raciocínio, e sim também da qualidade de outras faculdades cognitivas mais fundamentais - no caso, a imaginação, que, por sua vez, é limitada pela nossa experiência da realidade. O ponto em que quero chegar é que, se isso é assim em relação a simples questiúnculas históricas, é natural que o seja muito mais em se tratando de realidades espirituais para cuja investigação estamos muito menos preparados. O cristão que, para remover paradoxos, confia demais em sua capacidade de reunir informações e na qualidade de seu raciocínio lógico está em um beco sem saída, ainda que talvez não o perceba.